Título: Estratégia de Obama em xeque
Autor: Eichenberg, Fernando
Fonte: O Globo, 27/07/2010, O Mundo, p. 27

Estratégia de Obama em xeque

EUA tentam minimizar vazamento de documentos, mas cresce a pressão sobre rumo da guerra

Como numa reação orquestrada, os governos dos Estados Unidos, Paquistão e Afeganistão condenaram ontem o vazamento de cerca de 90 mil documentos relacionados à guerra no Afeganistão, divulgados pelo site Wikileaks aos jornais ¿New York Times¿ e ¿Guardian¿, além da revista alemã ¿Der Spiegel¿. Levando os protagonistas a um verdadeiro imbróglio diplomático, a denúncia fez o Afeganistão pedir que os EUA pressionem o governo paquistanês a cortar os laços com o Talibã ¿ alegando ser uma medida fundamental para a vitória contra os extremistas. Em Islamabad, funcionários do Paquistão desmentem ligações com o Talibã e especulam que o vazamento pode ser uma política deliberada de Washington para, talvez, conseguir um bode expiatório para o fracasso americano no Afeganistão. E em Washington, enquanto a Casa Branca chamava de ¿irresponsável¿ a divulgação dos documentos, o assessor de Segurança Nacional, general Jim Jones, garantia que o vazamento não vai mudar o comprometimento dos EUA ¿ nem com o Paquistão ou com o Afeganistão.

Ao mesmo tempo em que criticou a ameaça do vazamento, a Casa Branca mobilizou todas as suas forças para descreditá-lo e minimizar seus estragos. O porta-voz do governo, Robert Gibbs, insistiu que a suspeita relação entre o Paquistão e o Talibã já havia sido, inclusive, evocada pelo novo comandante das forças dos EUA e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão, general David Petraeus, no Congresso. Gibbs sublinhou também que nenhum dos documentos vazados ¿ do período de janeiro de 2004 a dezembro de 2009 ¿ inclui informações pós-anúncio da nova estratégia americana de envio de mais tropas para a região. O general Jim Jones, assessor de segurança do governo, reiterou o argumento.

¿ O presidente Barack Obama anunciou uma nova estratégia com um aumento substancial de tropas no Afeganistão, para dar maior atenção aos redutos do Talibã e da al-Qaeda no Paquistão, devido à grave situação que se desenvolveu neste país nos últimos anos ¿ sustentou o general Jones.

Ajuda ao Paquistão é questionada

As informações vêm à tona num momento de ceticismo da opinião pública americana e de renovadas críticas no Congresso quanto à estratégia da guerra que se arrasta por nove anos ¿ e, além de ter atingido seu ápice em número de vítimas, para a qual os EUA estão enviando ainda mais soldados ao campo de batalha. Ontem, no Capitólio, mesmo senadores democratas se diziam impressionados com o retrato de um desempenho ainda mais fracassado do que imaginavam. E prometiam aumentar a pressão sobre Obama para rever suas estratégias no Afeganistão.

¿ Aquelas políticas estão num estado crítico, e esses documentos podem muito bem sublinhar as apostas e calibragem necessárias para obter a política certa mais urgentemente ¿ disse, num comunicado, o democrata John Kerry, líder do Comitê de Relações Exteriores no Senado.

A denúncia do Wikileaks também reforça as já existentes suspeitas de colaboração do governo do Paquistão com rebeldes talibãs ¿ outro dado para questionar a prometida ajuda econômica a Islamabad, no valor de US$7,5 bilhões no prazo de cinco anos. O Pentágono anunciou que poderá levar semanas para analisar todos os documentos e disse que ainda é cedo para avaliar as consequências.

¿ Nós os examinaremos e tentaremos determinar quanto dano causarão a nossos agentes e parceiros da coalizão, se eles revelam fontes e métodos, e se representam ameaças à segurança nacional ¿ disse o coronel David Lapan, porta-voz do Pentágono.

Ao se recusar a comentar detalhes específicos dos documentos revelados ¿ como o uso de mísseis sensíveis ao calor, pelos talibãs ¿ o coronel deixou claro que o Pentágono levou a sério os documentos:

¿ Não é porque estão na internet que isso faz serem documentos revelados.

Para o Pentágono, a situação é mais delicada porque a defesa americana enfrenta forte pressão política para limitar seu volumoso orçamento. Para o ano que vem, Obama solicitou ao Congresso um aumento de 2,2% do total de gastos ¿ U$708 bilhões ¿, ou seja, 6,1% superior ao pico alcançado no governo de George W. Bush. O caso Wikileaks deve ainda incitar novos debates sobre a estratégia americana no Afeganistão ¿ como o início da retirada de soldados, prevista para julho de 2011¿, e a guerra certamente estará presente também nos palanques, durante a campanha para as eleições legislativas de novembro próximo.

Em Islamabad, oficiais paquistaneses demonstraram muita irritação com as acusações de que os serviços de inteligência estariam cooperando com o Talibã. Falando em condição de anonimato, muitos disseram temer que o caso prejudique as relações do Paquistão com os EUA. O único a falar abertamente, no entanto, foi o ex-chefe da inteligência Hamid Gul, citado pelo menos oito vezes nos relatórios do Wikileaks.

¿ Isso é completo nonsense. Malicioso, fictício e absurdo e se essas são as condições da inteligência americana, temo que não há de se espantar por que estão perdendo no Afeganistão e vão perder em qualquer lugar onde meterem o nariz ¿ afirmou Gul.

Cabul, por sua vez, preferiu direcionar suas críticas aos vizinhos paquistaneses. O porta-voz do governo afegão, Wahid Omar, disse que o presidente Hamid Karzai estava ¿chocado¿ pelo vazamento dos milhares de documentos, mas que as revelações ajudariam a chamar a atenção para o que o governo afegão sempre clamou junto à Otan: investigar o papel do Paquistão nos bastidores da insurgência.

¿ Sempre dissemos a nossos parceiros internacionais que eles não terão sucesso no Afeganistão a não ser que prestem atenção a lugares onde o terrorismo está sendo alimentado ¿ alfinetou o porta-voz, num recado nada velado a Islamabad.

Ontem, no auge da polêmica sobre a morte de civis, o governo de Cabul confirmou que pelo menos 45 pessoas ¿ inclusive mulheres e crianças ¿ morreram na semana passada, atingidas por um foguete da Otan na província de Helmand, no sul do país.

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