Título: Sem complacência
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Fonte: O Globo, 28/07/2010, Opinião, p. 7

Os representantes de dezenas de governos do mundo encerraram na semana passada a 13ª Conferência Internacional de Aids com um dilema: comemorar ou não? Os mais otimistas podem apontar significativas vitórias na luta contra o HIV e a Aids: o número de pessoas que são infectadas todos os anos, por exemplo, caiu cerca de 17% desde 2001. E mais, o número de doentes que recebem tratamento aumentou dez vezes em cinco anos e as mortes foram reduzidas em 10%.

Os desconfiados, por sua vez, também têm muito o que contar: apesar dos avanços, mais da metade das pessoas com HIV e Aids não recebe o tratamento adequado. A situação mantém-se particularmente sombria em grande parte da África Subsaariana, onde se encontram 60% das pessoas que vivem com HIV, dois terços das novas infecções e cerca de três quartos de todas as mortes relacionadas à doença. Essa relativa falta de progresso é decepcionante, especialmente considerando que 2010 foi o ano escolhido pelos líderes mundiais para ser o marco a partir do qual haveria acesso à prevenção, ao tratamento e aos cuidados a todos que estão em risco para o HIV e a Aids. E por que o mundo não conseguiu fazer jus às promessas feitas por seus líderes em 2001? Inevitavelmente, parte da resposta é dinheiro. O fato é que os doadores não se dispuseram a encontrar os fundos necessários para enfrentar a propagação do HIV e tratar as pessoas infectadas.

O mais grave é que ao invés de intensificar os esforços para o enfrentamento da epidemia, os países e instituições doadores parecem sobrevalorizar o sucesso alcançado como forma de justificar sua complacência e, assim, não cumprir com o seu dever. Um exemplo disso é o caixa vazio do Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária ¿ responsável por salvar quase cinco milhões de vidas até agora. É preciso lembrar que, para garantir o acesso universal ao tratamento, os doadores deverão reabastecer o Fundo com, no mínimo, 20 bilhões de dólares para os próximos três anos. Além disso, de forma a assegurar a efetividade e sustentabilidade da intervenção, faz-se necessário manter nos países serviços de saúde pública, infraestrutura e recursos humanos bem treinados.

Não se pode atribuir, no entanto, a solução do problema somente a vontade dos países ricos ou a gestão da ajuda financeira. Os governos africanos também têm papel crucial a desempenhar. Como parte da declaração das Nações Unidas de 2001, da qual consta a promessa de universalidade do acesso ao tratamento da doença, eles se comprometeram a destinar 15 por cento dos seus orçamentos nacionais para o setor saúde e, em especial, para o combate ao HIV/Aids. Apesar de alguns poucos países como Malavi e Botsuana cumprirem a meta, em onze nações africanas se gastam atualmente em saúde somente cinco dólares por pessoa ao ano. Em março, África do Sul, Ruanda e Egito conseguiram, em surdina, fazer com que o compromisso fosse derrubado na reunião de ministros da Fazenda da União Africana.

Isto é preocupante. Se os governos do Norte e do Sul não destinarem fundos adicionais, o acesso universal à prevenção, ao tratamento e aos cuidados continuará sendo uma meta inatingível. A batalha também será perdida se a discriminação e o preconceito contra a doença e suas consequências não forem enfrentados.

Há países na África onde os governos dificultam a luta contra o HIV aplicando medidas punitivas. Em Serra Leoa, por exemplo, uma lei de 2007 criminaliza pessoas com HIV, pois considera-se que as mesmas expõem outras ao risco de infecção. A lei prevê penas inclusive para mulheres grávidas que passam o vírus para os seus filhos ainda na gestação. Não é só na África que isso acontece: em 2008, no Texas, nos Estados Unidos da América, um morador de rua HIV positivo foi condenado a 35 anos de cadeia por ¿agredir um funcionário público com uma arma mortal¿. Seu crime: cuspir em um policial quando estava bêbado.

Esses mecanismos de criminalização das pessoas portadoras do vírus da Aids buscam cortar caminho para o controle da doença, mas na verdade acabam contribuindo para a sua expansão, pois desestimulam aqueles que desconfiam estar contaminados de fazer o teste e de receber o tratamento.

A realidade é triste, pois, quase uma década depois da promessa dos líderes mundiais em deter a epidemia da Aids, o progresso ainda depende de ações tanto de países ricos quanto pobres. No momento, uma coisa é certa: os delegados dos países que participaram da Conferência de Viena semana passada voltam com muito dever de casa para fazer. E é bom que saibam: não há espaço para complacência.

MOHGA KAMAL-YANNI é assessora em Saúde e HIV da organização não governamental Oxfam na Inglaterra.

Roberto DaMatta volta a escrever neste espaço nos próximos dias.