Título: Endividamento público fácil e perigoso
Autor:
Fonte: O Globo, 01/08/2010, Opinião, p. 6

De boas intenções o inferno está cheio, diz o ditado popular. E em se tratando de iniciativas temporárias no setor público, mesmo na melhor das intenções, é recomendável sempre se ficar de orelha em pé, pois de repente elas ganham voo próprio e tomam direção indesejável.

A crise financeira internacional de 2008/2009 fez com que o governo adotasse uma série de medidas para contrabalançar o repentino e acentuado colapso sofrido pela economia brasileira em decorrência da ameaça que vinha do exterior.

Várias das medidas se mostraram úteis, mas, como se temia, acabaram também provocando uma aceleração generalizada nos gastos públicos, e não apenas daqueles direcionados a investimentos.

No primeiro trimestre deste ano a economia brasileira cresceu a um ritmo chinês, o que levou a arrecadação tributária a bater novamente recordes. Nem por isso, o governo federal conseguiu ter um desempenho satisfatório, pois a acumulação de superávits primários ainda está distante das metas estabelecidas e, mesmo com essa expansão acelerada do Produto Interno Bruto, o conjunto da dívida pública não se alterou em termos relativos, tanto no seu valor total como no líquido (descontados os créditos a receber).

A razão para isso é que, mesmo com a recuperação na receita fiscal, a despesa é tão grande que o governo tem recorrido a endividamento para financiar programas de investimentos, sejam projetos de companhias estatais (Eletrobras, Petrobras) ou de empresas privadas.

Somente para o BNDES foram repassados R$ 180 bilhões em títulos públicos no período de um ano. Do lado das boas intenções pode-se dizer que esses papéis serviram para o financiamento de investimentos que podem melhorar a capacidade produtiva e gerar mais na frente renda e receitas que compensem o custo do endividamento.

Mas no lado da prática o que se observa é uma tentação perigosa, pois, na contabilidade oficial, este tipo de endividamento não se reflete na dívida líquida (a emissão dos títulos gera um crédito do Tesouro a receber do BNDES). A moda pegou, pois foram feitas duas emissões e já se fala em uma terceira, de R$ 20 bilhões, para que o BNDES possa arcar com compromissos crescentes.

A garantia desses empréstimos torna irreal, por exemplo, a avaliação de alguns projetos vultosos em infraestrutura (tipo trembala ou a grande e necessária hidrelétrica de Belo Monte).

Em passado não distante, o setor público usou e abusou de endividamentos, que viraram bolas de neve, para gastar mais do que podia. Se a ressurreição dessa tendência não for contida de imediato, sofreremos as consequências na eventualidade (espera-se que isso não aconteça) de surgimento de uma outra crise na economia mundial. Ninguém acreditava que isso fosse ocorrer com o euro, e para surpresa geral a moeda única europeia se viu à beira do precipício devido à irresponsabilidade fiscal de governos que haviam se comprometido formalmente a andar na linha.

Como estamos às vésperas de eleições gerais, este é um tema que precisa vir à tona e ser bem discutido, para que a moda acabe o quanto antes e não passe para a próxima administração na forma de um esqueleto fiscal.