Título: O pão caro de cada dia
Autor: Berta, Ruben; Araújo, Vera
Fonte: O Globo, 09/08/2010, Rio, p. 14
TCE diz que estado pagava dobrado e suspende contrato de lanches para presos
Um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE) aponta para um ingrediente indigesto no cardápio do sistema penitenciário: a suspeita de desperdício de dinheiro público. No dia 26 de julho, o órgão determinou a rescisão do contrato da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) com a empresa Induspan. Responsável por sete padarias-escolas que funcionavam dentro de presídios, ela recebia do estado R$0,36 para a produção de cada lanche que era entregue diariamente a 29 mil detentos e guardas de 49 unidades. O detalhe: o estado também arcava com o custo de todos os insumos, pago a outras empresas. E era utilizada a mão de obra dos próprios presos. Desde 2001, a Induspan já recebeu mais de R$29 milhões. De acordo com o TCE, sempre com dispensa de licitação.
Basicamente, também segundo o TCE, o lanche recebido pelos presos e funcionários consistia em uma bebida e um pão com margarina, entregues de manhã e à noite. Todos os ingredientes e a bebida eram pagos pelo estado a outras empresas. Aos domingos, segundo a própria Induspan, eram servidos produtos prontos, industrializados. Em geral, um biscoito salgado ou um minibolo e uma bebida, também pagos pelo estado a outras empresas.
A principal função da Induspan era a produção dos pães para os lanches. Não pagava pela farinha nem pelo fermento, mas cobrava R$0,36. Para se ter uma ideia, em padarias de Bangu, bairro vizinho ao Complexo Penitenciário de Gericinó, é possível comprar um pão francês por R$0,25. Segundo a Fecomércio, a média do preço médio unitário no Rio ficou em R$0,32 na última semana de julho.
Além de determinar a suspensão do contrato com a Induspan, o TCE decretou a inidoneidade da empresa, que fica impedida de assinar novos contratos com o estado até alguma decisão em contrário. O órgão ainda solicita ao auditor geral do estado que adote todas as providências necessárias para a realização de uma tomada de contas especial, que possa aprofundar a apuração dos fatos, além de identificar os responsáveis e quantificar os danos causados aos cofres públicos.
MP: enriquecimento sem justificativa
A decisão do tribunal de determinar a suspensão do contrato com a Induspan foi embasada por um parecer assinado pelo procurador Diego Boyd, do Ministério Público Junto ao TCE, ao qual o GLOBO teve acesso. Segundo o texto, os trabalhos de auditoria constataram ¿o enriquecimento sem causa da Induspan e o correspondente dano ao erário¿. Sobre os altos custos do contrato para o estado, o relatório é incisivo: ¿Chega-se à situação absurda de o Poder Público arcar duas vezes, por exemplo, com os insumos de produção!¿
O relatório ressalta que, mesmo pagando R$0,36 por unidade, o estado não só arca com todos os insumos, como disponibiliza o lugar para a produção, incluindo o fornecimento de energia elétrica e água. Outro ponto destacado é o fato de a mão de obra dos detentos ser livre de encargos trabalhistas. E, de acordo com uma inspeção feita pela equipe técnica do TCE em 2009, boa parte dos equipamentos instalados pela Induspan nas padarias-escolas ¿já está sendo utilizada há bastante tempo, alguns um tanto depreciados(...), devendo ser excluído dos custos dos contratos prorrogados¿ desde 2001.
Além de fornecer os lanches, outra função importante da Induspan seria o treinamento dos presos, também alvo de críticas do relatório: ¿Não há qualquer preocupação com o acompanhamento e ressocialização dos detentos supostamente treinados¿. O procurador Diego Boyd pontua ainda que a Fundação Santa Cabrini ¿ entidade encarregada pela Seap da gestão do trabalho dos detentos ¿ não faz ¿o controle de frequência e redução de pena, exercido por um detento, no caso da Penitenciária (feminina) Talavera Bruce¿, no Complexo de Gericinó. De acordo com a legislação penal, a cada três dias trabalhados, um é reduzido da pena do preso.
A remuneração dos internos também foi alvo de críticas no relatório. Inspeções realizadas nas padarias dos presídios detectaram que ¿os detentos recebiam os valores diretamente em mãos, sem qualquer forma de recibo ou controle¿ da fundação. A entidade enviou à equipe de vistoria folhas de pagamento informando o recebimento de quantias, sempre no valor de R$100. O relatório do TCE contesta o dado dizendo que os presos recebem ¿remuneração diversa da informada pela Santa Cabrini¿, pois, ¿tão logo aproveitados como mão de obra, passam a receber valores variados¿.
Apesar de todas as falhas apontadas pelo relatório, dados levantados pelo gabinete do deputado estadual Alessandro Molon (PT) no Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios (Siafem) mostram que a Induspan ganhou mais força nos últimos anos. Os empenhos para a empresa começaram em R$595 mil, no início do projeto de padaria-escola, em 2001. De 2008 para 2009, houve o maior aumento: de R$4,6 milhões para R$6,2 milhões.
¿ Tudo indica que houve malversação do dinheiro público. Agora, há a necessidade de se continuar a investigação, para que os envolvidos respondam por supostos desvios e que o estado consiga recuperar os recursos ¿ afirmou Molon, responsável pela denúncia que resultou na inspeção do TCE nos contratos da Induspan com a Seap.
O relatório foi enviado ao Ministério Público (MP) estadual, que já tem um inquérito em andamento para apurar os contratos da Induspan com a Seap. Também foi acionada a Defensoria Pública para investigar a denúncia de que não haveria controle na redução da pena de acordo com os dias trabalhados.
Além da Induspan, o TCE também aponta suspeitas sobre outras duas empresas, que faziam o fornecimento dos insumos para os lanches: a Masgovi e a Matmalap. O órgão pede ao pregoeiro da Seap entre 2003 e 2006, Sidnei Pacheco de Melo, que explique por que as duas empresas, com sócios em comum, monopolizaram o serviço no período.
O MP estadual abriu, em 2007, um inquérito, ainda em andamento, para investigar uma denúncia anônima de que as duas empresas não entregavam nos presídios os produtos na quantidade pela qual o estado pagava. O TCE realizou, em 2009, uma inspeção num contrato de seis meses assinado em 2008 pela Masgovi com a Seap, de R$13 milhões, com dispensa de licitação, em que constatou um sobrepreço mensal de R$416 mil em relação ao preço médio da tabela da Fundação Getúlio Vargas (FGV).