Título: Vida nova longe da ilha dos Castro
Autor: Guilayn, Priscila
Fonte: O Globo, 08/08/2010, O Mundo, p. 40

Na Espanha, asilados cubanos e suas famílias falam dos anos de prisão, do exílio e do futuro

MANUEL UBALS e sua família no Hotel La Princesa, nas cercanias de Madri: à espera de uma definição sobre possibilidade de asilo nos EUA

JULIO CESAR Galvez, a Dama de Branco Irene Vieira e o filho Emmanuel, no refeitório do hostal

RICARDO GONZÁLEZ , com a mulher (acima), mostra o passaporte marcado ¿saída definitiva¿; e Normando Hernández com a filha Daniela, traumatizada pela prisão do pai

¿Papai, as aulas começam no dia 15 de setembro¿, advertiu Daniela, que foi a primeira a informar-se da data de começo do ano letivo na Espanha. Dos seus 8 anos, passou sete visitando o pai entre grades, em Cuba, seu país, onde sempre foi uma aluna aplicada e amante dos versos: ¿Uma nuvem advertiu que ia chover/entre as águas caiu meu papai/para voltar a ver-me.¿ Este minipoema foi um dos que esta pequena exilada escreveu ao chegar a Madri, acompanhada da mãe, do tio e do pai, Normando Hernández, protagonista de todos seus contos e poesias. Ele é um dos 20 presos políticos do Grupo dos 75 que saíram da prisão direto para o aeroporto de Havana e, de lá, para a Espanha, após a intervenção da Igreja Católica e do governo espanhol.

¿ O primeiro passo é legalizar nosso status. O governo espanhol quer dar-nos o status de ¿proteção internacional assistida¿, que é meio caminho entre imigrante e asilado político. Mas nós queremos que nos reconheçam como asilados políticos. No nosso passaporte, inclusive no da minha filha, vem escrito ¿permissão de saída definitiva¿. Isso é claramente um desterro ¿ diz Normando, ao receber O GLOBO no hostal (uma categoria entre hotel e pensão) onde a sua e outras três famílias cubanas estão alojadas temporariamente.

Enquanto isso, Daniela terá de esperar a definição sobre seu futuro escolar. Ela, como os demais cubanos que, desde o dia 13 de julho, vêm chegando à Espanha, vivem na total dúvida sobre o que será de suas vidas.

¿ Prefiro não criar expectativas. Durante sete anos esperei dia após dia pela libertação do meu pai, que nunca chegava... Isso é muito duro. Se poderei ou não continuar os estudos em restauração de pintura de murais já veremos. O mais importante agora é estar com ele ¿ diz David, de 22 anos, de mãos dadas com o pai, o jornalista Ricardo González Alfonso, condenado a 20 anos de prisão.

Ansiedade, pelo menos aparentemente, não é uma característica que se note em nenhum destes cubanos recém-exilados. Alojados num bairro afastado do Centro de Madri, num hostal cercado de fábricas, eles não mostram grandes curiosidades para conhecer a cidade onde deverão morar.

Mas cada visita ao Hospital Gregório Marañón parece ser suficiente para ver, do ônibus, a capital espanhola. São muitas as consultas. Os sete anos em cárceres cubanos deixaram seqüelas não só nos presos. Daniela, com 8 anos, pesa só 15 quilos. Seu quadro clínico é de desnutrição severa, resultado de um transtorno psicológico derivado da ausência do pai. Mas a adaptação ao atual lugar de moradia destas famílias apresenta outros problemas: no hostal, são 30 quartos coletivos por andar, com quatro banheiros.

¿ As pessoas têm costumes diferentes e estamos tendo que aprender a conviver com isso. Os somalis, por exemplo, caminham pelos corredores, muitas vezes, só com uma toalha na cintura. Mas o que para mim é falta de respeito, para eles é cultural ¿ pondera Ricardo.

Depois da enxurrada de reclamações na imprensa sobre a falta de conforto e de privacidade, o alojamento destinado aos ex-presos políticos cubanos subiu de nível. Enquanto os dois primeiros grupos de dissidentes liberados suam nos quartos coletivos, os demais opositores ao regime de Fidel Castro desfrutam do ar condicionado em suítes de um hotel 3 estrelas.

¿ Para um lado, os príncipes, e para o outro, os mendigos. Como naquele filme ¿ brinca Ricardo González.

As queixas dos dissidentes do hostal desencadearam críticas contra esses ex-presos.

¿ Não somos mal-agradecidos. Pelo contrário. Estamos imensamente gratos pela enorme solidariedade dos espanhóis. Para nós, que viemos da prisão, qualquer coisa é melhor do que aquilo. Mas temos que pensar que nossas famílias viviam com um lar estruturado, dentro do possível, e da noite para a manhã tiveram que deixar tudo para trás ¿ explica Normando.

A diferença entre os ¿príncipes¿ e os ¿mendigos¿, no entanto, é apenas superficial: a hospedagem. As feridas do passado, as discordâncias a respeito do presente e as incertezas sobre o futuro são, senão iguais, extremamente parecidas. Impacta, por exemplo, escutar tudo o que Juana Mercedes sofreu. A filha do motorista Jesús Mustafá, condenado a 25 anos de prisão por suas ¿atividades contrarrevolucionárias¿, não é capaz de conter as lágrimas quando se lembra de detalhes dos últimos sete anos. Mustafá fazia parte do Projeto Varela e organizava em casa as reuniões do Movimento Cristão de Libertação, ambas as iniciativas com um mesmo objetivo: reformas políticas na ilha.

¿ Chegou um momento em que meu filho disse que ia emigrar, e meu marido também. Eu falei que fossem em frente, mas eu não sairia de Cuba sem meu pai ¿ conta Juana, emocionada, recordando que o filho era insultado no colégio, a fachada de sua casa, pichada, e bolas de ferro, lançadas pela janela em plena sala de estar.

As libertações fizeram com que os familiares destes ex-presos compartilhassem um sentimento que definem como agridoce: tiveram de processar rapidamente a alegria de saber que seus pais, maridos ou filhos seriam soltos, e a tristeza de deixar para trás toda uma vida, amigos e parentes. Entre o telefonema com a notícia da libertação e a chegada da polícia para levá-los a Havana não passou nem uma hora. Sem malas, com uma muda de roupa na mão, mal tiveram tempo para despedidas.

¿ Nem pude pegar o boletim das crianças, que terão de fazer prova de nivelamento para ver em que série entrarão aqui na Espanha ¿ conta a Dama de Branco Mayelin Bolívar, mulher do comerciante Manuel Ubals, que perdeu um dos gêmeos de que estava grávida quando ele foi preso: o que sobreviveu, conheceu o pai no avião.

Emmanuel, de 6 anos, se recusa a comer e José Manuel, de 14 anos, perde cabelo a tufos. Submetidos a tratamento psicológico, os pequenos exilados são os mais afetados pela incógnita sobre como e quando conseguirão reconstruir suas vidas. As famílias de Ubals e Mustafá esperam uma definição sobre a possibilidade de asilo nos EUA. Ubals foi condenado a 20 anos de prisão, acusado de ser pago pelos americanos para desenvolver suas atividades anticastristas:

¿ Nunca recebi nada dos EUA ¿ afirma Ubals. ¿ Sou um ativista de direitos humanos.