Título: Essa gente que aí está
Autor: Passos, José Meirelles
Fonte: O Globo, 08/08/2010, O País, p. 10

Histórias do Moreno

O extinto MDB sempre foi um partido municipalista.

Entranhou-se, desde a sua criação, pelo interior do país. Chegou primeiro que todos. Claro, como frente partidária, abrigou praticamente todas as legendas nascidas depois do bipartidarismo, inclusive o PT.

Esse é o segredo da sua sobrevivência até hoje. Essa é mais uma das imensas dívidas que tem com o seu criador Ulysses Guimarães.

É que Ulysses adorava campanhas municipais. Ele se sentia melhor pendurado na carroceria de um caminhão ou em cima de caixotes de feiras, improvisados como palanques, do que no conforto das grandes capitais, com aqueles mega showmícios, que tinham até camarotes para autoridades e artistas.

No interior do país, aí sim, ele se sentia em casa, à vontade.

Era um ator mambembe, percorrendo sempre sozinho os rincões do país.

O PMDB foi chegando ao poder devagarinho, ainda no roldão da enchente eleitoral de 74, que deixou a ditadura desabrigada em 16 estados.

Em 82, sente finalmente o gosto do poder: elege nove governadores, entre eles os grandes expoentes do partido como Franco Montoro e Tancredo Neves. Mas Ulysses não se sentia um deles. Não gostava de palácios. Celebrizado com a frase eu não sou rampeiro, como oposicionista, nunca subira a rampa do Planalto. Só o fez quando o PMDB chegou lá com Sarney, em 85.

Aí, nesse ano, vem a primeira eleição direta para prefeitos de capitais. Ulysses opta pelo Nordeste e começa por Teresina, no comício do seu amigo Heráclito Fortes. É recebido como chefe de Estado, até porque era politicamente mais forte e mais popular que o presidente da República. Embriagado por aquela verdadeira apoteose, o velho combatente da ditadura liga o seu piloto automático e dispara os jargões que o guindaram à condição de comandante da oposição brasileira: Essa gente que aí está tem medo do PMDB. Mas nós vamos eleger os principais prefeitos do Brasil para poder desalojar os inquilinos do Palácio do Planalto.

Frisson geral no palanque. O inquilino estava ali no palanque, o próprio PMDB. Heráclito tenta cutucar Ulysses. Renato Archer, ministro de Sarney, leva mãos à cabeça, e a cantora Fafá de Belém, grande atração do comício, tenta segurar a sua gargalhada-metralhadora, mas não consegue. E Ulysses, totalmente enlouquecido com a multidão: Nós vamos derrotar essa gente que não consegue derrotar a inflação e a miséria. Eles têm o conforto e as mordomias palacianas, e nós temos os municípios. O voto está no município. O cidadão mora no município e o PMDB vai ganhar as eleições municipais em todo o Brasil! Só depois que desce do palanque, carregado pela multidão, é que Renato Archer consegue dizer: Ulysses, a inflação e a miséria são nossas, essa gente que aí está somos nós. Nós agora somos governo! E o presidente do PMDB, ainda incorporado, dá a volta por cima na gafe: Nós?!! Quem é ministro do Sarney é você! Eu sou PMDB.