Título: Prosperidade em ritmo de anos-luz
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 08/08/2010, O País, p. 16
O progresso acelerado e as contradições de Porto Velho, a cidade sacudida pela construção simultânea de duas hidrelétricas
Enviado especial
PORTO VELHO. Como o tijolo é pouco para tantos pedidos, o preço do milheiro disparou. A poucos metros da olaria, cruzando a rua de saibro, surge um novo bairro. Uma das moradoras arrisca: Vai se chamar Porto Cristo. Mas o ex-oleiro Terivânio Ribeiro, elevado a empreiteiro, não tem tempo para espiar os casebres que despontam em lotes recém-fatiados.
Ele apressa os operários que batem o barro, cortam as línguas de argila que brotam da máquina, transformandoas em tijolos, para levar ao cozimento. Pilhas de madeira aguardam a vez de ir ao forno. O ar, embebido de poeira, acentua o aspecto barrento do lugar. No fim do dia, mais quatro mil tijolos serão lançados de seu ventre no fenômeno que mudou o eixo das migrações amazônicas: a explosão econômica de Porto Velho, empurrada pela construção simultânea de duas usinas hidrelétricas nos arredores da cidade.
A capital de Rondônia, que já passou pelo apogeu da borracha e do ouro, vive hoje o ciclo do cimento.
As barragens de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, cujas obras começaram no ano passado, abriram 23 mil empregos diretos na região.
Porto Velho virou um imenso canteiro de obras, do Centro à periferia pobre. Bairros novos, como Porto Cristo, avançam em suas bordas. O número de veículos duplicou. Os motoristas conheceram os engarrafamentos e os primeiros malabaristas de sinal. Os aluguéis subiram 300%. A cidade ganhou um shopping e se verticaliza, embalada por cerca de 60 obras. A população, hoje de 350 mil habitantes, deverá saltar para 500 mil no próximo censo.
As obras, faraônicas, lembram o integrar para não entregar da época do regime militar. Mas, em tempos de democracia, exigiram detalhadas negociações com os atores envolvidos (comunidades ribeirinhas, índios, Ministério Público, prefeitura, governo estadual e Ibama).
Uma das construtoras envolvidas, que ajudara a erguer a hidrelétrica de Samuel na ditadura, quando era só escolher o local a ser alagado, desta vez teve que erguer até um abatedouro de jacaré para conquistar os caboclos do Madeira.
Firma cresceu de 9 para cem corretores
O fenômeno provoca alegrias e inquietações.
Terivânio Ribeiro, que queimava tijolos de madrugada na olaria artesanal, virou gerente do negócio.
Sua renda subiu 60%. Está tão feliz quanto o corretor imobiliário Marcos Bogo. Em 2007, Bogo trabalhava com nove corretores em sua firma, a Social. Hoje, são cem, diz ele.
Mas o diretor do único pronto-socorro da cidade (João Paulo II), Rodrigo Bastos, vê o progresso superlotar a unidade. Os acidentes de trânsito, entre 2008 e 2009, subiram 30%, dos quais 90% ocorreram com motos há 2.500 mototáxis da cidade. Outro preocupado é o promotor Aluildo de Oliveira, do grupo montado pelo MP estadual para acompanhamento do impacto causado pelas usinas. Ele teme que as pressões políticas levem as verbas compensatórias, transferidas pelas usinas para o setor público para reduzir o impacto social, para bolsões eleitorais fora da área de influência das hidrelétricas.
A expressão mais forte do desenvolvimento súbito de Porto Velho não está nos paredões monumentais das represas, da altura de prédios de 45 andares. Para entendê-lo, basta examinar o tamanho do prato de comida dos operários, igualmente monumentais, servidos nos canteiroscidade às margens do Madeira ou abrir a geladeira da neocomerciante Aparecida Souza da Silva, abarrotada de Dydyo Cola.
Não sabe o que é Dydyo? pergunta ela, surpresa com a ignorância de seus interlocutores.
Bebida regional, Dydyo Cola é o carro-chefe dos negócios de dona Aparecida. Ela chegou com a família (marido e dois filhos) há três meses de um sítio nas cercanias de Porto Velho para ocupar um lote em área recém-invadida da Zona Leste da capital.
O marido logo foi chamado para trabalhar de motorista para um doutor, carregando areia. E ela, para não ficar parada, abriu uma birosca na casa de um único cômodo.
Nos bairros Eletronorte, Ulisses Guimarães, Mariana e Tancredo Neves, na Zona Leste, a ocupação se repete.
Moradores que chegam e outros que melhoram de vida, aumentando a casa ou comprando uma moto, têm na ponta da língua a lista de reivindicações: transporte público, energia elétrica e escola.
A quem me pede vaga, não há outra resposta. É não admite a irmã Carmen Baseggio, diretora da Escola Marcelo Cândia (subsede 1).
Enquanto explicava, outra mãe aflita batia à porta. Era a terceira só naquela manhã de maio. Outro não da diretora do colégio público (ensinos fundamental e médio) mais procurado da região, onde a taxa de evasão não passa de 1% entre os 1.567 alunos. Sem condições de atender, ela sugere aos pais: procure o Ministério Público.
Mas no MP, o clima repete o de outros serviços públicos: correria para recuperar o tempo perdido. O progresso nas ruas parece estar alguns passos à frente das autoridades. Somente em agosto, quando as obras já estavam a pleno o vapor, a Procuradoria Geral de Justiça criou um grupo multidisciplinar para acompanhar o seu impacto.
Desde cedo, percebemos que os estudos iniciais focavam mais o meio ambiente do que a questão social.
Batíamos na tecla: era preciso fazer escolas, rede de esgoto. Mas a pressão foi grande, e as obras saíram assim mesmo. Fomos engolidos defende-se a promotora Andréa Dracena, da área ambiental.
Saneamento precário, igarapés transformados em valas negras, aumento da prostituição e da violência, ausência de planejamento viário.
Nada disso dobra o entusiasmo da população local e dos que chegam para alargá-la. As oficinas de qualificação profissional correm para formar especialistas. Já não há marceneiros e pedreiros para tanta demanda. As mulheres, antes quase restritas à sobrevivência no balcão das lojas, hoje viraram operárias.
Tenho medo de altura, mas a paixão pela máquina é maior disse Natielen do Nascimento, ao operar com a sua escavadeira na beira de um barranco em Santo Antônio.
Ex-auxiliar de escritório e mãe solteira, aos 22 anos, com uma filha de 7, Natielen comprou o seu primeiro carro em janeiro.