Título: Artigo 320
Autor: Abramo, Claudio Weber
Fonte: Correio Braziliense, 28/06/2009, Opinião, p. 21

Diretor executivo da Transparência Brasil

As duas últimas farras em que se meteram os parlamentares do Congresso Nacional, a das passagens na Câmara e a dos atos secretos no Senado, parecem ter pregado em definitivo a tampa do ataúde dessas Casas. A conclusão não decorre apenas dos escândalos em si, que por se juntarem a uma fila incessante de novas, mais mirabolantes e mais extensas picaretagens, já demonstram quão baixo os políticos brasileiros podem chegar.

O pior desses dois episódios são as operações-abafa a que se entregaram com gosto os presidentes da Câmara e do Senado, seus colegas de mesas miretoras e o conjunto dos respectivos plenários. Embora diferentes no conteúdo, nos dois casos se aplicou a mesma estratégia de mistificação. A saber, compraram uns pareceres jurídicos em que se afirma que o que era ilegal não é mais, que responsabilidades não cabem aos responsáveis e que ninguém tem de devolver um tostão aos cofres públicos.

A saber, para os parlamentares do Congresso Nacional, os escândalos não foram realmente escandalosos. Nada que um parecerzinho bem ajustado não conserte. Contudo, contrariamente ao que os congressistas querem nos impingir, houve apropriação indébita de recursos públicos, exércitos de pessoas se beneficiaram indevidamente de atos e omissões de responsabilidade de parlamentares, e se cometeram crimes.

No caso da farra das passagens, em que parlamentares pagaram passagens aéreas para parentes, namoradas, apaniguados diversos e sabe-se lá mais quem, a defesa incorporada pela Mesa da Câmara foi a de que o comportamento não era proibido, e portanto era permitido.

Ora, a quase totalidade dos habitantes de Brasília sabe que, enquanto que a um agente privado se permite fazer tudo aquilo que não é proibido, o comportamento dos agentes públicos em face das normas é oposto a esse: eles só podem fazer aquilo que é explicitamente permitido.

Deputados são agentes públicos. Não podem fazer o que lhes dê na telha, mas apenas o que é expressamente definido em norma. Deputados nunca puderam mordiscar o dinheiro público para custear o turismo de seus amigos e parentes, e ninguém sabe isso melhor do que Michel Temer, o presidente da Câmara.

No Senado a situação é ainda pior, se é que algo pode ser pior do que isso. Ao longo de cerca de dez anos, centenas de pessoas foram promovidas, contratadas, beneficiadas por privilégios e assim por diante, sem que tivessem existido os atos administrativos que autorizassem tais providências.

O caso parecia simples: pessoas ocuparam funcões, foram promovidas, receberam as benesses, tudo de modo indevido. Não deve haver um único habitante do Distrito Federal que ignore o fato de que nada no Estado acontece sem que tenha sido publicado em Diário Oficial (ou boletim correspondente). Ninguém recebe salário, tira férias, é promovido, demitido, removido, viaja, se a providência não for anunciada publicamente.

Portanto, como no caso em questão a publicação não ocorreu, segue-se que as pessoas beneficiadas precisariam devolver o dinheiro recebido ilegalmente. Os responsáveis pelos pagamentos precisariam ser alvo de processo administrativo. E os dois grupos de pessoas deveriam ser processados criminalmente.

Não no entendimento do presidente da Casa, José Sarney, seus colegas de Mesa e seus companheiros de plenário. Inventou-se no Senado a seguinte doutrina: se os atos se concretizam a partir do nada (ou seja, se por exemplo um indivíduo cai de paraquedas numa sala, reivindica uma mesa e passa a trabalhar como cabo eleitoral do senador X ou Y) mesmo na ausência de um ato administrativo e se, anos depois, surge da gaveta de alguém um pedaço de papel em que se afirma que aquele sujeito seria contratado, promovido etc., a concretização do fato (o fulano ter aparecido na tal sala) é suficiente para transformar em decisão administrativa o não ato administrativo.

Entenderam? Se o leitor entendeu, trata-se de um gênio do direito administrativo, merecedor de um contrato vitalício como parecerista de políticos. Ao formar em bloco no apoio à nova doutrina Temer-Sarney, o conjunto total dos congressistas brasileiros sacramenta de vez o que todo mundo já sabe: esse pessoal está aí mesmo para se aproveitar.

Ironicamente, os apelos que se fazem a José Sarney para que deixe o cargo de presidente do Senado são uma forma de desviar a atenção da responsabilidade que cabe aos senadores coletivamente. Como se a renúncia de Sarney, e mesmo de toda a Mesa Diretora do Senado, resolvesse o problema da cumplicidade da Casa inteira quanto à operação-abafa.

Para finalizar, convém lembrar algo importante, também sobejamente conhecido nessa cidade de barnabés que é Brasília: agentes públicos que de forma deliberada deixem de punir irregularidades cometem crime de condescendência criminosa (Art. 320 do Código Penal).