Título: Entre o aterro e o lixo no mangue
Autor: Duarte, Alessandra
Fonte: O Globo, 15/08/2010, O País, p. 14

Ex-catadora conta como é morar sobre o que já foi um lixão, espaço presente em 1,6 mil cidades no país hoje

NO ALTO, catadores se misturam ao lixo ao lado de cavalos e urubus no Aterro de Itaoca. No centro, a catadora Cláudia Albino sentada na barraca que montou com plástico de piscina e sofá, no meio do aterro. Abaixo, Fernanda Nunes Pedreira e sua casa com quintal que dá para a poluição do mangue da Baía

O problema de morar em cima de lixo é que às vezes a casa treme. Pois a casa de Fernanda Nunes Pedreira treme bastante. Construída sobre o que antes era uma continuação do antigo lixão de Itaoca, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio, ela fica ao lado do hoje Aterro de Itaoca, que recebe tráfego contínuo de caminhões de lixo ¿ e é colocar a mão na parede quando passa um caminhão mais pesado para saber do que estamos falando. Atrás da casa, fica um mangue que vai até a Baía de Guanabara. É onde a moradora e os vizinhos jogam o lixo quando não o queimam, pois as ruas do entorno do aterro, reclamam, não têm coleta ¿ como 7 milhões de domicílios no país.

Condições de moradia e vida como estas é o que O GLOBO mostra na série ¿Como vive o brasileiro¿, que vai apontar problemas em áreas como educação, transporte e saneamento no cotidiano da população ¿ e que desafiarão o presidente da República a ser escolhido este ano. A série começa hoje, com o tema ¿Meio ambiente e lixo¿ e a brasileira Fernanda.

No lugar de banheiro, lona

Mais da metade das cidades do país (3.427 do total de 5.565) não tem destinação adequada do lixo urbano: mandam-no a lixões (1.688) ou aterros controlados (que não são o aterro ideal, o sanitário). É o caso do Aterro Controlado de Itaoca, previsto para ser desativado em 2011.

A vizinha do aterro trabalha de babá há pouco mais de um ano. Antes, dos 15 aos 30, foi catadora no antigo lixão. A mãe, o pai e os irmãos também cataram por lá. Em Itaoca e nos arredores, como Fazenda dos Mineiros, Itaúna e Salgueiro, catar lixo é tradição passada entre gerações. A atividade movimenta a economia de parte considerável de uma cidade que é o segundo maior colégio eleitoral do estado, só perdendo para a capital.

Fernanda explica por que tamanho interesse naquilo que as pessoas jogam fora:

¿ Como babá, eu ganho R$400 por mês. No lixo, eu tirava R$200, às vezes, por semana. Por mês, eram R$600, R$700 até ¿ conta, e revela a ligação entre lixo e dólar. ¿ A gente cata conforme o dólar. O preço que mais cai quando o dólar cai é o do alumínio; aí, a gente cata PET.

O dinheiro que vem com o lixo espanta as moscas e o fedor presentes no aterro. Faz com que valha a pena levar marmita para almoçar no trabalho mesmo ¿ que é de mais de 8 horas por dia para a maioria dos catadores ¿ ou ter de ficar embaixo de alguma lona ou plástico quando dá a hora de ir ao banheiro.

¿ Muita comida de lá a gente levava para casa. Outras coisas também: minha cama é do lixo, meu sofá... ¿ lembra Fernanda, e passa a listar o que já viu no lixão. ¿ Feto, placenta, dedo... Antes de ser aterro, jogavam lixo hospitalar, então até com luva a gente se espetava com agulha.

¿ Já achei foi muito currículo. Desses que a gente manda e dizem que vão chamar ¿ diz Cláudia Albino, de 30 anos, na frente da barraca que montou no aterro com um sofá, um plástico de piscina como teto e um tapete na entrada, para ficar quando o sol torra ou a chuva aperta. De Fazenda dos Mineiros, ela teve sorte inversa à de Fernanda: babá por seis anos, deixou o trabalho pois a patroa se mudou. Não arranjou mais emprego e se tornou catadora. ¿ Eu só queria um emprego para sair daqui.

Com 32 anos, Fernanda Pedreira tem três filhos. É ¿mãe e pai dos três¿. Sustenta-os sozinha, após se separar do marido por ele ter se envolvido com drogas. Tendo estudado até a 6ª série, Fernanda, que nasceu em Cachoeiras de Macacu e foi para São Gonçalo aos 6, mudou-se para a casa atual há três anos. Não tem escritura, mas é casa própria. ¿É posse¿, diz. Foi construída pela irmã, ao lado do aterro. Antes lixão também, o local foi aterrado há mais de dez anos.

Criou-se ali a comunidade do Balança ¿ com esse nome pela proximidade da balança por onde os caminhões passam para o aterro. Fica no bairro com o nome não menos curioso de Manuel da Ilhota ¿ o que faz lembrar que se está perto da Ilha de Itaoca, na Baía de Guanabara, para onde vão o esgoto e o lixo de Manuel da Ilhota, que não tem saneamento ou coleta. Nem asfalto. Nem abastecimento de água. E no Balança, como debaixo do chão é lixo, sacos e outros dejetos saltam da terra.

¿ Não precisa cavar muito e você já vê lixo. É o Morro do Bumba 2. Só não desaba porque não é morro, mas vai afundar. O chão é fofo ¿ sentencia, quando a vizinha Vanda passa e fala das rachaduras na sua casa após o número de caminhões crescer, quando os destroços do Morro do Bumba (que, erguido sobre antigo lixão em Niterói, caiu com a chuva) e o lixo de Niterói passaram a ir para lá. ¿ As crianças vivem doentes. Um senhor morreu porque deixava panela destampada, as moscas foram, e deu tapuru na barriga dele.

Fernanda e os irmãos já cataram lixo quando menores, no tempo em que ainda não era proibida a entrada de crianças como hoje. Se os filhos dela quiserem ser catadores, ela deixa?

¿ Deixo, sim! Aqui é o tráfico ou o lixo. Eu prefiro o lixo.

oglobo.com.br/pais/eleicoes2010