Título: Histórias consumidas pelo vício
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 21/08/2010, O País, p. 14

País tem cerca de 1 milhão de dependentes do crack. Nos últimos anos, 63% dos delitos com drogas foram no Sudeste

SÃO PAULO. É festa no sobrado de Jacira e Claudemiro, família de classe média do bairro de Perus, na periferia de São Paulo. Depois de dois anos de espera, o filho caçula, Claudemiro Júnior, de 22 anos, passa o Dia dos Pais em casa.

Na segunda-feira, porém, ele voltaria para cumprir o resto da pena de dois anos e seis meses no presídio de Franco da Rocha. Foi condenado por tráfico. Ele estava no metrô quando foi abordado pela polícia em 2008. Na bolsa da namorada, menor de idade, mais de um quilo de cocaína.

- Ele assumiu todo o crime. Mas, para mim, negou. Disse que não sabia. Para a advogada, ele contou que já havia feito outras vezes - admite a mãe.

Irmão vítima da Cracolândia

Hoje, no país, há de 800 mil a um milhão de viciados em crack, estimam especialistas na área, como o psiquiatra Ronaldo Laranjeira. Segundo ele, desse total, 10% passaram por prisões ou tiveram problemas com crimes.

No Sudeste, a situação tende a ser mais crítica: segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública, 63% dos delitos envolvendo drogas - posse, uso e tráfico - ocorreram na região em 2004 e 2005. São Paulo concentra o maior número, 41%.

O GLOBO acompanha a ansiedade da família de Claudemiro, a uma noite da "festa". Jacira escolhe as fotos para um painel com as imagens de Júnior quando criança. A maioria ao lado do pai: na praia, pescando, brincando na areia, num sítio.

- Acho que a cama agora ficou pequena. Ele cresceu lá. Está um "homão"- empolga-se Claudemiro. - As pessoas ficam achando que a gente está envolvida. Mas tem muitos filhos envolvidos nos crimes, nas drogas, e os pais nem estão sabendo.

Talvez pelo medo do preconceito, Jacira nunca tenha contado no trabalho que o filho está preso. Ela prepara uma lasanha, prato predileto de Júnior. Apesar das visitas toda semana, nunca pôde levar a massa na cadeia:

- Lasanha é proibido, por causa do recheio.

Claudemiro e Jacira passaram a frequentar a Pastoral Carcerária, ajudando outras famílias de detentos.

- Mesmo quando meu filho sair, vamos continuar. Agora ele vai ficar um ano no semiaberto, mas faz três meses que conseguiu o direito, só que não tem vaga, então está no regime fechado ainda- conta Jacira.

A poucas ruas da casa de Claudemiro, no Dia dos Pais não teve lasanha. O almoço de domingo ainda "engasga" na garganta de Cristiane*, de 19 anos. Seu irmão, Paulo*, está sumido desde que foi solto da prisão, em maio. Tendo vivido na Cracolândia - área no centro de São Paulo onde jovens consomem e vendem crack - desde o fim de 2009, o rapaz, também de 22 anos, foi preso em abril por roubo. É viciado em crack há pelo menos três anos.

- O pior foi quando nosso irmão começou a pedir comida na rua, no nosso bairro. Sempre fomos pobres, mas nunca nos faltou comida - diz Cristiane.

Sob um frio de 15 graus, a irmã caçula de Paulo chora ao pensar que o irmão está na rua, esmolando comida e dinheiro. Ela e o pai desconfiam que ele tenha voltado à Cracolândia, mas não foram procurá-lo. Quando ele foi preso, o pai recusou-se a vê-lo atrás das grades.

- Meu pai disse que iria atrás dele, mas nunca na cadeia. Ele tentou internar meu irmão, pagava casas de repouso, mas Paulo sempre telefonava pedindo para ele ir buscá-lo. Não ficava lá.

Cristiane conta que o irmão é filho de um relacionamento anterior do pai e foi morar com a família aos 14 anos:

- Ele trabalhava e, quando trabalhava, era ótimo no que fazia. Era caprichoso. Depois a mãe dele morreu, a avó que o criou também. Ele começou a dizer que não importava mais nada. Ficava violento. Já agrediu meu pai.

Deprimido, o pai não quis dar entrevista. Também não permitiu que a família desse ao jornal os nomes verdadeiros. Cristiane conta que, em 2009, enquanto o irmão andava pelas ruas, encontrou-o pedindo esmola.

- Eu estava na pastelaria. Ele entrou pedindo comida. Fiquei com medo, porque ele estava com um menino. Tive medo de ser roubada, de ele querer se vingar da vida que eu tinha e ele, não. Depois fiquei mais triste de pensar assim, porque sei que ele não me faria mal.

A garota lembra que, quando o irmão morava em casa, a família sempre estava em conflito. Quando não tinha dinheiro, Paulo começava a vender as roupas, saía até "levando a televisão":

- Antes da faculdade, eu fazia escola técnica integrada, ficava 12 horas na escola. Eu gostava de ficar tanto tempo fora porque tinha medo de acontecer algo em casa. Meu irmão já tinha agredido meu pai. Vou confessar uma coisa: com ele fora de casa, eu me sinto mais tranquila. Mas também, assim com esse frio, a gente fica pensando: como será que ele está?

Cristiane conta sua história ao lado do primo Ricardo, que teve outra sorte. Viciado por dez anos em cocaína, o vendedor passou a frequentar uma igreja evangélica e "está limpo" de álcool, drogas e tabaco há seis anos, conta ele:

- Seis anos e sete meses.

(*) Nomes fictícios. Os sobrenomes dos familiares de Claudemiro foram preservados a pedido deles.