Título: Cacoete intervencionista
Autor:
Fonte: O Globo, 23/08/2010, Opinião, p. 6

Assim como em política há clichês, palavras de ordem e slogans tão altissonantes quanto vazios, existem leis cujo enunciado, numa leitura desatenta, pode levar a conclusões tão apressadas quanto enganosas, e geralmente com resultado nulo. No Brasil, há excesso de normas e carência de obediência à legislação por um arraigado apego cultural ao proibido e/ou por inocuidade dos textos legais.

Há leis para regular praticamente tudo no país, desde o comportamento de autoridades até o exercício da cidadania, mas o desvão onde parecem estar escondidos a responsabilidade de quem exerce funções públicas e muitos dos direitos dos cidadãos é forte evidência de que não bastam boas intenções para mudar hábitos. Para que se justifique, uma lei precisa estar de acordo com necessidades reais da sociedade.

O projeto de lei assinado recentemente pelo presidente Lula, que criminaliza toda e qualquer forma de punição à criança e ao adolescente a chamada Lei da Palmada poderia ser entendida folcloricamente dentro dessa perspectiva, como uma norma inócua e redundante, se não se tratasse de iniciativa muito mais preocupante.

Trata-se, na verdade, de inaceitável intromissão do Estado na educação familiar, além de ser igualmente uma pirotecnia legislativa para tratar de um grave problema a violência contra a infância , do qual já dão conta diplomas legais como o Código Civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente e até a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 1990.

Mais do que louváveis, ações governamentais em favor da criança são compromissos inscritos na Constituição. Tal proteção se consubstancia na adoção de adequadas políticas educacionais, na garantia de vagas nas escolas, na criação de uma eficiente rede de saúde, no combate à exploração do trabalho infantil e na implementação de programas específicos para os jovens, inclusive aqueles ligados à segurança e ao bem-estar. Não por acaso, e disso dão conta os preocupantes indicadores de políticas públicas, essas são áreas nas quais o poder público, por obrigação constitucional, tem o dever de influir, mas insatisfatoriamente o faz. Do que decorre uma distorção no país: onde precisa ser forte, o Estado mostra-se tíbio; e revela-se intrometido em assuntos que não lhe dizem respeito, como a vida privada dos cidadãos e no caso específico da Lei da Palmada a educação das crianças.

Tal intromissão está longe de ser novidade na gestão Lula.

Trata-se, na verdade, de nova manifestação de um cacoete intervencionista que, de Brasília, vem confrontando o princípio do livre arbítrio no país. É o vício da tutela, que leva o governo companheiro a tentar ditar regras eivadas de conteúdo ideológico para o funcionamento da imprensa, o mercado publicitário, a venda de remédios e por aí vai.

Não é o caso, evidentemente, de rejeitar a regulamentação de setores sensíveis, para evitar abusos contra o cidadão. Mas vai uma distância colossal entre impor comportamentos ao mercado, em nome de um suposto interesse social (que, em realidade, mascara um viés ideológico), e preservar a população de maus profissionais. Para isso, o país dispõe de dispositivos orgânicos ou institucionais específicos, próprios de uma sociedade que se pretende democrática e pluralista. Portanto, prescinde da tutela de um Estado todo-poderoso.