Título: Ignorância na língua-mãe
Autor: Moreno, Jorge Bastos
Fonte: O Globo, 24/08/2010, O País, p. 13

Ninguém consegue contar a História política do país dos últimos 40 anos sem falar de Antônio Carlos Magalhães, o ACM. Tanto que ACM não merece apenas um capítulo, mas um livro inteiro, que está sendo escrito pelo jornalista Fernando Morais.

Quando o livro vai ficar pronto, ninguém sabe. Nem o autor. Definir seu lançamento é tão complexo quanto foi a vida do biografado.

Um dos que mais cobravam o livro, o ator Guilherme Fontes, que já comprou do amigo os direitos sobre a biografia de Assis Chateaubriand, parou de fazê-lo, desde que manteve este diálogo com Fernando Morais:

¿ Quando é que sai o livro do ACM?

¿ Só depois que você lançar o ¿Chatô¿.

Enquanto o livro não sai, recordemos aqui um dos casos bem reveladores da personalidade de ACM. Vaidoso, não perdia a pose. Quando seu conhecimento era posto em xeque, blefava. Certa vez, segui-o até uma comissão da Câmara, onde fora depor por convocação do inimigo Geddel Vieira Lima. Enquanto aguardava seu depoimento, entrevistei-o sobre amenidades. Quis saber, por exemplo, quem era seu cantor preferido:

¿ Ah, sem dúvida, Frank Sinatra, embora eu não saiba uma palavra em inglês e não entenda o que ele está cantando. Mas não bota essa última parte. O povo da Bahia acha que eu sou poliglota.

Na hora do seu depoimento, o inquisidor Geddel, antes de fazer a pergunta propriamente, queria ler um relatório de uma empresa americana que tratava da questão que motivara a convocação. Eram duas folhas, uma com o texto original, e a outra, a tradução para o português. A exemplo de ACM, Geddel, pelo menos na época, não sabia nada de inglês e tentou blefar justamente com quem havia lhe ensinado todas as malandragens da vida:

¿ O relatório está em inglês e em português. O senhor quer que eu leia em que idioma? ¿ perguntou Geddel, convencido de que ACM pediria o da versão em português. E foi aí que errou.

¿ Pode ser em inglês mesmo ¿ respondeu ACM. Geddel ficou chocado e encrencado.

No fundo, lá no fundo, ACM tinha um coração e não ia deixar seu ex-amigo em apuros. Nas primeiras palavras, Geddel foi salvo pela versão-ternura do terrível ¿Toninho Malvadeza¿:

¿ Para, para que seu inglês está péssimo!

¿ E está mesmo! ¿ atestou a então deputada Sandra Cavalcanti.

E ACM, cobrando pedágio de salvação a Geddel:

¿ Isso não quer dizer que seu português seja castiço. É também péssimo. Desconfio que seja até pior do que o seu inglês. Só que é mais patriótico ser ignorante na língua-mãe.