Título: A dor que os números escondem
Autor: Marqueiro, Paulo
Fonte: O Globo, 25/08/2010, O País, p. 16

Saúde do Rio tem bons indicadores e melhor média de leitos no país, mas atenção básica ainda é problema

CRISTIANE DOS SANTOS com o filho Reinaldo, de 1 ano e 4 meses (acima, ao centro), aguarda atendimento na UPA da Penha, depois de passar por outras duas unidades de saúde; Lidiane com os quatro filhos, e Tatiane, com suas duas crianças: viagem perdida ao Hospital estadual Carlos Chagas, em Marechal Hermes

As histórias da doméstica Luciana de Souza, de 30 anos, e das donas de casa Tatiane Carvalho, de 26, e Lidiane Guerra, de 28, cruzaram-se na porta do Hospital estadual Carlos Chagas, em Marechal Hermes, subúrbio do Rio, na fria manhã da última sexta-feira. O encontro das três reflete os desencontros do sistema de saúde do Rio de Janeiro.

Moradora de Marechal Hermes, Luciana chorava, enquanto abraçava a filha Bruna, de 6 anos, que mal conseguia ficar em pé. A menina estava com febre e vômitos, mas não conseguiu atendimento no Carlos Chagas. Quando Luciana chegou, pouco antes das 7h, já não havia mais senhas.

¿ A menina está ardendo de febre, mas eles falaram que não tem pediatra ¿ disse Luciana, que pensou em levar a filha a outro lugar, mas não tinha dinheiro para as passagens.

A seu lado, estava Lidiane com seus quatro filhos: Juan Carlos, de 10 anos, Lídia, de 8, Larissa, de 5, e o caçula João Pedro, de 1 ano e três meses, que se recupera de catapora. Ela queria mostrar ao médico os exames que o menino tinha feito, mas também não foi atendida.

¿ Na semana passada, eu consegui pegar número, mas tive de sair de casa de madrugada, com o meu marido, para estar no hospital às 5h. Consegui fazer os exames, mas agora tenho de mostrá-los ao médico.

Moradora da Favela do Muquiço, em Guadalupe, Lidiane diz que a família já teve plano de saúde, mas, quando o marido, que é metalúrgico, trocou de emprego, perdeu o benefício:

¿ Não temos condição de pagar plano de saúde ou médico particular. Quando sobra algum dinheiro, a gente compra remédio. Tenho que depender de hospital público.

Em outras palavras, isso pode significar uma via-crúcis por postos de saúde, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e hospitais da cidade.

¿ Quando a UPA não resolve, tenho de ir para o Salgado Filho (hospital municipal no Méier) ¿ afirma Lidiane.

¿É preciso chegar às 4h¿

Tatiane também perdeu a viagem. No Carlos Chagas, não conseguiu atendimento para o caçula Daniel, de 6 meses, que estava com crise de bronquite. Empurrando o carrinho de bebê ao lado do outro filho, Davi, de 4 anos, ela contou que há quatro dias estava tentando consulta para Daniel.

¿ Eu vim terça, quarta, quinta e hoje. Mas quando chego aqui, dizem que já não tem número. É preciso chegar às 4h. Mas como vou sair de madrugada, neste frio, com meu filho, que tem crise de bronquite?

Na semana anterior, Tatiane passara por drama semelhante, ao buscar atendimento para o filho mais velho, Davi.

¿ Fui à UPA de Marechal Hermes, mas não havia pediatra. Então fui para a UPA da Penha. Lá tinha, mas estava lotada. Então fui para o Lourenço Jorge (hospital municipal na Barra da Tijuca), onde fui muito bem atendida. Mas tive de pegar duas conduções para ir e duas para voltar.

Nas filas e salas de espera das unidades de saúde, histórias como a de Tatiane se confundem com a de outras mães. Na tarde da última sexta-feira, a auxiliar de serviços gerais Cristiane Paulino dos Santos, de 29 anos, era uma das 50 pessoas que aguardavam atendimento na UPA da Penha. O filho Reinaldo, de 1 ano e 4 meses, estava com diarreia e vômitos:

¿ Primeiro, eu fui ao Herculano Pinheiro (em Madureira), mas não havia pediatra; depois fui à UPA de Irajá, que também não tinha. E agora estou aqui ¿ disse Cristiane.

Os números, às vezes, mascaram a dor. Quem analisa as estatísticas do Datasus sobre a oferta de serviços básicos de saúde no Estado do Rio de Janeiro imagina o melhor dos mundos. De acordo os dados do Ministério da Saúde, o Rio registra 2,9 leitos de internação por mil habitantes, a melhor média do país, ao lado de Goiás. Se forem observados os postos de trabalho médico, o Rio, com 4,1 (por mil habitantes), só fica atrás do Distrito Federal, que tem 4,9. Mas por que esses números empalidecem quando são confrontados com a realidade das filas de hospitais, UPAS e postos de saúde?

Para o médico sanitarista Paulo Buss, ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), atual diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da instituição e membro da Academia Nacional de Medicina, o Rio ¿ apesar de ostentar bons indicadores de saúde em relação a outros estados ¿ tem um modelo excessivamente apoiado na hospitalização, dando pouca importância à atenção primária:

¿ O problema é a organização do sistema. O Rio, historicamente, sempre investiu em hospitais de emergência. Os governos diziam: ¿Não tem hospital? Abre mais um.¿ Isso é uma deformação, porque em 99% de seu tempo de vida, a pessoa precisa de atenção primária e não de hospital.