Título: Células de gordura regeneram músculo
Autor:
Fonte: O Globo, 26/08/2010, Ciência, p. 38

Pesquisa brasileira usa células-tronco de tecido adiposo para restaurar a musculatura

CÉLULAS-TRONCO embrionárias usadas em pesquisas no Brasil: estudos na área podem sofrer atrasos por causa de decisão judicial nos EUA de vetar financiamento público

Um grupo de pesquisadores brasileiros conseguiu obter células musculares a partir de células-tronco adultas retiradas do tecido adiposo (gordura), num avanço que pode levar à criação de tratamentos contra distúrbios como a distrofia muscular, doença genética que causa fraqueza progressiva e degeneração dos músculos. Em conferência ontem no Congresso Brasileiro de Neurologia, no Rio, Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano e do Instituto Nacional de Células-Tronco em Doenças Genéticas da USP, apresentou a descoberta, que será publicada em breve na revista ¿Stem Cell Reviews and Reports¿.

Na pesquisa, Mayana colheu células-tronco adultas do tecido adiposo e de cordões umbilicais. Após serem cultivadas em laboratório, ambas as linhagens aparentavam ser iguais. Mas, após injetadas em camundongos afetados pela doença, os resultados foram bem diferentes, conta. Enquanto as células-tronco do tecido adiposo aderiram às áreas afetadas e se diferenciaram em células musculares humanas, melhorando as condições das cobaias, as vindas do cordão umbilical não conseguiram realizar a diferenciação, permanecendo inertes.

¿ Mostramos que as células-tronco adultas têm vocações diferentes para formar tecidos dependendo de onde elas foram colhidas. No caso da distrofia, as vindas do tecido adiposo se mostraram melhores ¿ explica.

Por outro lado, ambas linhagens não foram rejeitadas mesmo sem o uso de imunossupressão, o que as torna uma alternativa viável para futuros tratamentos. Nesse sentido, o estudo trouxe mais revelações. As células humanas continuaram a ser encontradas nos ratos até seis meses depois das injeções, mas desapareceram após um ano. Além disso, a aplicação direta nas áreas mais afetadas não foi eficaz.

¿ Isso quer dizer que eventuais tratamentos deverão demandar múltiplas injeções e ser sistêmicos, isto é, por via sanguínea, para chegar em todos os músculos ¿ diz Mayana.

A pesquisadora lembra, no entanto, que os estudos ainda estão em estágio inicial e não há prazo para que um tratamento ou cura da doença chegue aos consultórios e hospitais:

¿ Estamos chegando perto, mas ainda não há previsão de uso prático. É como uma casa em construção, em que colocamos mais um tijolo importante, mas ainda não está pronta.

Polêmica nos EUA com proibição de financiamento público

Os resultados do estudo brasileiro foram divulgados em meio à nova polêmica mundial com a decisão da Justiça dos EUA proibindo o uso de verbas governamentais nos estudos com células-tronco embrionárias. Por isso, Mayana também lamentou a decisão da americana, que, na sua opinião, deverá atrasar as pesquisas na área. No fim do mês passado, a Administração de Alimentos e Drogas dos EUA (FDA, na sigla em inglês) autorizou o início dos primeiros testes em seres humanos de um tratamento com células-tronco embrionárias para pacientes com lesões na medula espinhal.

¿ Isso é ridículo e não faz o menor sentido, já que o principal argumento contra as pesquisas com embriões era de que não havia aplicações clínicas para elas e estes testes eram justamente isso. Se por um lado ficamos aliviados por essa proibição não ser aqui no Brasil, por outro lamentamos, pois precisamos das pesquisas internacionais para somar e complementar as nossas ¿ comenta ela, que espera uma reação forte da comunidade científica e dos próprios pacientes contra a proibição. O governo do presidente Barack Obama já anunciou que vai recorrer da decisão, que, por enquanto, não afetaria experimentos em curso.

Mayana não acredita que células adultas reprogramadas para um estado semelhante ao das células-tronco embrionárias, chamadas células de pluripotência induzida (iPS), possam dar um fim à polêmica do uso de embriões, embora outro estudo recente tenha indicado que não são poucas as diferenças genéticas entre elas.

¿ É um discussão boa, mas outras pesquisas também mostraram que as iPS têm memória, tendo uma preferência para formar os tecidos de onde elas foram retiradas. Assim, por enquanto, precisamos das células embrionárias, pois elas são as grandes formadoras de tecidos por excelência. Até o momento, por exemplo, elas são as únicas que se mostraram capazes de formar células nervosas funcionais, objetivo dos testes aprovados e agora sob risco nos EUA ¿ argumenta.