Título: Rota sinistra na tirlha de uma nova vida
Autor:
Fonte: O Globo, 29/08/2010, O Mundo, p. 44

Cartéis da droga impõem o terror a imigrantes ilegais rumo aos EUA

DEZENAS DE corpos se acumulam no necrotério de Pima, nos EUA: falta espaço com o crescente número de vítimas

ARMAS APREENDIDAS em San Fernando, onde imigrantes foram mortos

Oinóspito deserto que cobre a região fronteiriça entre o México e os Estados Unidos representa uma constante ameaça para os imigrantes ilegais em busca do Éden americano. Aqueles que superam as inúmeras adversidades da perigosa travessia enfrentam novos riscos do outro lado da fronteira. Além da costumeira vigilância policial, milícias voluntárias de civis americanos ¿ em sua maioria racistas e anti-hispanos ¿ revezam-se em patrulhas numa incessante caça a imigrantes sem documentos. E, para agravar o clima hostil, o Arizona promulgou a controversa lei anti-imigração SB 1.070 ¿ que teve seus principais aspectos de criminalização da imigração ilegal suspensos pela Justiça.

Nos últimos anos, os imigrantes dispostos a se aventurarem na temerária viagem têm de enfrentar o obstáculo de maior periculosidade: a ameaça de sequestro por parte dos poderosos cartéis que controlam as regiões da fronteira e ditam as regras do tráfico de seres humanos. Na semana passada, porém, o perigo foi elevado a alturas inimagináveis com o massacre de 72 pessoas em San Fernando, em Tamaulipas ¿ o maior suspeito do crime é o grupo Los Zetas.

No México, organizações independentes e a Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) vinham alertando para a escalada da violência contra a população migrante. Os dados apontam a rota do terror do povoado de Tenosique (Tabasco) até Coatzacoalcos (Veracruz) ¿ conhecido como um cemitério de centro-americanos. Os relatórios de 2008 e 2009 revelam crescentes ações de raptos, extorsões, torturas, execuções e estupros ¿ em muitos casos, praticados com a cumplicidade de policiais, evidências de corrupção endêmica e da ausência de comando do governo.

Segundo o relato de Juán, um nicaraguense de 25 anos, o chefe do Zetas possui uma casa logo atrás do Centro de Migrantes em Tenosique. Entra e sai quando quer para sequestrar os que estão ali alojados.

¿ Como os agentes do Instituto Nacional de Migração (Inami) trabalham com ele, trocam pessoas: quando os Zetas têm `balines¿ (migrantes que não podem pagar o resgate) e a Imigração tem migrantes com famílias nos EUA, fazem intercâmbio ¿ diz Juán.

Arturo, hondurenho de 21 anos, é outro exemplo da crueldade dos cartéis. Sequestrado por seis meses, contou que foi torturado e obrigado a pagar mais de US$5 mil para ser libertado, dinheiro obtido graças a um tio que mora nos EUA. No local onde ficou preso havia cerca de 300 pessoas:

¿ Abusavam sexualmente das mulheres, das crianças, e especialmente de uma jovem de 15 anos, que estava muito traumatizada, chorava todo o dia. E de mim. Uma mulher contou que estava sequestrada havia dois anos.

Em Coatzacoalcos, há relatos de retirada de órgãos de migrantes cujas famílias não têm dinheiro para o resgate. Para Paulo Martínez, da organização Sem Fronteiras, a situação reflete a falta de uma política pública migratória eficaz focada nos direitos humanos:

¿ Há ações de restrição de fluxos migratórios no país, mas isso só favorece a delinquência organizada. Em 2009, num período de seis meses mais de nove mil migrantes foram sequestrados no México.

Já Antonio Bustamante, advogado do Arizona especialista em imigração, acusa os cartéis de estarem levando o México ¿ao fundo do poço¿. Para ele, a política imigratória dos EUA colaborou para o aumento da violência:

¿ É ignorância dos republicanos dizer que é preciso fechar as fronteiras. Não se dão conta de que as pessoas morrem porque não podem entrar como antes, agora têm de pagar um coiote dos cartéis.

Bustamante apoia o combate ao tráfico de drogas no México, considerado outra parte do problema, mas cobra também uma ação mais enérgica por parte dos americanos.

¿ Somos cúmplices dos massacres porque os EUA compram drogas. Essa é uma guerra perdida a cada ano, e quem ganha com isso são os cartéis e os traficantes. Sou a favor de que se estudem formas de acabar com a criminalização das drogas ¿ defende.