Título: Mineiro sonhava ter carro e casa
Autor: Malkes, Renata
Fonte: O Globo, 30/08/2010, O Mundo, p. 23

Cônsul do Brasil diz não haver previsão para liberar corpos de imigrantes mortos no México

RIO e CIDADE DO MÉXICO

Quando tocou o telefone da casa de Juliard Aires Fernandes, na pequena cidade mineira de Sardoá, na região do Vale do Rio Doce, a cerca de 300 quilômetros de Belo Horizonte, seu pai e seus primos pensaram que receberiam, finalmente, notícias do jovem que no último dia 3 deixara o local em busca de emprego nos Estados Unidos. Mas, do outro lado da linha, oficiais do Itamaraty confirmavam: Juliard é uma das vítimas da chacina que matou 72 imigrantes ilegais que cruzavam o estado mexicano de Tamaulipas a caminho da fronteira com os EUA. Autoridades mexicanas disseram ainda terem encontrado no local do crime o passaporte de Hermínio Cardoso dos Santos, de 24 anos. O corpo, no entanto, ainda não havia sido identificado pelos peritos que trabalham na cidade de Reynosa. Os dois mineiros eram amigos de infância e saíram juntos em busca de uma nova vida em território americano.

Natural de Santa Efigênia de Minas, área rural do Vale do Rio Doce, Juliard completaria 20 anos no próximo dia 8 de setembro. Depois de perder a mãe, há pouco mais de um ano, morava em Sardoá, a 12 quilômetros da cidade natal, onde, alegava, era mais fácil encontrar trabalho na construção civil.

Segundo Gislaine Aires de Almeida, prima de Juliard, ele havia deixado a escola há cerca de dois anos e trabalhava para juntar dinheiro e viajar.

Após ver amigos terem negado o pedido de visto para os EUA e obcecado com a ideia de um emprego no exterior , decidiu se arriscar fazendo a travessia ilegal pelo México.

Era um menino saudável, esforçado.

Estamos chocados com a tragédia contou Gislaine ao GLOBO. Ele sonhava com uma vida mais confortável, tinha os sonhos de qualquer imigrante. Saiu junto com o amigo Hermínio há um mês, e há 20 dias não tínhamos notícias. Ele sabia que era perigoso, nós dissemos, víamos na TV.

Mas quando os jovens querem alguma coisa, não ouvem ninguém.

Promessa de levar primo aos EUA

Outro primo, Carlos Enio Aires Coelho, de 14 anos, disse que, antes de partir, Juliard prometeu levá-lo aos EUA para trabalhar com ele tão logo o adolescente completasse 18 anos.

O sonho maior dele era juntar dinheiro para comprar um carro e uma casa no Brasil lembrou Carlos.

A irmã de Hermínio, Célia Maria, de 33 anos, conta que os pais, Antônio Augusto da Rocha e Maria Cardoso do Rocha, estão inconformados.

Ele falou que ligava quando chegasse lá balbuciou, entre lágrimas, Maria, em entrevista à TV Globo.

As famílias não sabem quando os corpos retornarão ao Brasil. O traslado internacional é de responsabilidade do Itamaraty e até ontem à noite ainda não havia previsão de que as autoridades mexicanas dessem autorização para o embarque. O governador de Minas Gerais, Antonio Anastasia, determinou que a Secretaria de Desenvolvimento Social dê assistência aos familiares e anunciou que o governo estadual fará o translado dos corpos a partir do desembarque no Brasil até os municípios onde moravam.

O cônsul-geral do Brasil no México, Márcio Araújo Lages, retornou à capital, Cidade do México, onde aguarda orientações das autoridades locais.

De acordo com ele, ainda não há qualquer previsão para a liberação dos cadáveres embora haja interesse em apressar todo processo burocrático.

Não podemos fazer qualquer previsão. É preciso que os legistas mexicanos terminem as autópsias. Se não forem encontrados documentos relacionados a todos, deverão ser necessários exames de DNA ou aguardar até que parentes reclamem os corpos afirmou Lages, por telefone, lembrando que ainda há chance de haver mais brasileiros entre os mortos.

Segundo o governador de Tamaulipas, Eugenio Hernández Flores, até ontem 32 corpos haviam sido identificados no necrotério da cidade de Reynosa além do mineiro 14 hondurenhos, 12 salvadorenhos e cinco guatemaltecos. Em entrevista ao jornal El Universal, Flores garantiu que os governos federal e estadual estão dando atenção especial ao caso para agilizar os trâmites de liberação.

O clima de tensão não deu trégua no norte mexicano. Ontem pela manhã, bandidos lançaram três granadas próximo à Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe quando centenas de pessoas se reuniam numa missa em memória das 72 vítimas da chacina. Pelo menos 23 pessoas ficaram feridas, entre elas nove crianças. Na cidade de Hidalgo, próximo ao Golfo do México, o prefeito Marco Antonio Leal foi morto a tiros quando teve seu carro alvejado por supostos traficantes. Sua filha, de 4 anos, foi ferida no ataque.

Polícia Federal detém 33 ilegais

Em Monterrey, no estado de Nuevo León, o Exército anunciou a captura de um dos líderes do cartel Los Zetas na cidade, Juan Francisco Zapata Gallegos, conhecido como El Billy. Editoriais publicados ontem na imprensa local especulam que o aumento da violência nos últimos dias é atribuído ao desespero dos cartéis do narcotráfico diante da vitória da política antidrogas do governo. Na semana passada, o conservador presidente Felipe Calderón reforçou o patrulhamento das regiões junto à fronteira america-na. Sob críticas pela incapacidade de conter o fluxo de imigrantes ilegais em seu próprio território, o governo deu os primeiros sinais de reação: uma operação da Polícia Federal interceptou ontem um ônibus que levava 33 cidadãos de países da América Central de Querétaro a Reynosa. Sem documentos, o grupo foi encaminhado ao Instituto Nacional de Imigração.

Enquanto organizações internacionais como a Human Rights Watch denunciam a corrupção nas forças de segurança do México como um dos maiores facilitadores do tráfico humano no norte do país, centenas de imigrantes clandestinos ousaram na tarde de sábado ir às ruas de Saltillo, no estado de Coahuila, protestar contra a matança de San Fernando.

Com os rostos cobertos e o apoio de nativos mexicanos, os imigrantes alegam que a violência está se tornando cotidiana.

Nossos países de origem nos negam oportunidades de desenvolvimento, mas o México nos nega a oportunidade de existir, afirmou o grupo, através de um comunicado.