Título: O Brasil não está preparado para crescer de forma tão acelerada
Autor: Senna, José Júlio
Fonte: O Globo, 05/09/2010, Economia, p. 30

Economista elogia distribuição de renda, mas critica burocracia e avanço do Estado ENTREVISTA

SÃO PAULO. Ex-diretor do Banco Central, o economista José Júlio Senna diz que os dados do PIB brasileiro, divulgados pelo IBGE na sexta-feira passada, reforçam a leitura de que a economia do país está bem próxima da sua velocidade potencial, com risco de repique da inflação.

Nesse sentido, ele vê a possibilidade de o BC retomar a alta da Selic a partir de 2011, como forma de esfriar a atividade geral. O Brasil não está preparado para crescer de forma tão acelerada, diz ao GLOBO. Ele elogia o governo Lula por ter aumentado a distribuição de renda, mas faz restrições à herança do atual governo. Cita o crescimento da máquina pública e os recorrentes arranhões em princípios democráticos e as repetidas ameaças à liberdade de imprensa.

Aguinaldo Novo

O GLOBO: Qual a projeção para a trajetória futura do PIB? JOSÉ JÚLIO SENNA: Os dados referentes ao segundo trimestre (divulgados pelo IBGE) reforçam a interpretação de que daqui para a frente a economia apresentará um ritmo de crescimento muito próximo da sua velocidade potencial. Pouco acima ou pouco abaixo, mas muito próximo do limite. Houve um movimento de antecipação do consumo no primeiro trimestre, aproveitando a manutenção de estímulos fiscais para a compra de bens duráveis. Com a retirada desses estímulos, o resultado foi uma acomodação no trimestre seguinte. Agora, pesando fatores permanentes e transitórios, o cenário é de uma variação (anualizada) em torno de 4,5% nos próximos trimestres.

Neste caso, qual seria o resultado no fechamento do ano? SENNA: Algo ligeiramente superior a 7%.

Já estamos preparados para crescer dessa forma? SENNA: Certamente não. Não há capital humano (mão de obra) em volume suficiente para isso, nem infraestrutura. O quadro institucional também não ajuda, com excessivo peso do Estado, burocracia e alta carga tributária. A economia brasileira ainda não é tão produtiva assim.

Taxas de 7% podem ser atingidas momentaneamente, em especial na esteira da recuperação de uma crise. Mas ela, certamente, não é sustentável.

O governo Lula afirma que a expansão de gastos públicos e concessão de incentivos fiscais foram fundamentais para o país sair da crise. Esta foi mesmo a melhor solução? SENNA: Em determinadas circunstâncias, como as representadas por alto grau de capacidade ociosa da economia, é recomendável que se adote uma política monetária expansionista, e não me oporia a uma política fiscal também expansionista.

Foi isso que se fez ao longo da crise. O BC foi rápido no gatilho e, no plano fiscal, o governo federal ampliou os gastos e fez uma política de combate à desaceleração econômica. Mas duas coisas precisam ser levadas em conta. Não é claro que a composição do dispêndio público que foi escolhido tenha sido a melhor opção. Poderia ter havido prioridade do investimento, e não dos gastos correntes.

O segundo ponto é que a economia já opera acima ou muito próxima da sua capacidade produtiva de equilíbrio.

Neste caso, um repique da inflação (nos próximos meses) é um evento praticamente certo.

O Banco Central acertou ao manter a Selic em 10,75%? SENNA: O jogo da Selic já terminou neste ano. Mas como o uso dos fatores (máquinas, mão de obra etc.) já está muito intenso, vejo a necessidade de retomar a alta (da taxa básica de juros) em 2011, talvez com 1,5 ponto percentual de alta.

O novo presidente vai herdar um país melhor do que o de quatro anos atrás? SENNA: É raro um governo que não apresente um certo avanço em algumas áreas. Temos melhor distribuição de renda e desempenho econômico superior ao da administração anterior. De negativo, o governo que se encerra deixa um crescimento muito acentuado da máquina pública, sem contrapartida para os serviços oferecidos à sociedade.

Tivemos também recorrentes arranhões em princípios democráticos e repetidas ameaças à liberdade de imprensa.

O que falta fazer para aumentar o chamado PIB potencial brasileiro? SENNA: Os problemas que persistem são os mesmos enfrentados por um largo número de governantes do passado. O Brasil, historicamente, cuidou muito mal da sua base de capital humano (educação e especialização da mão de obra), sofre há anos com problemas de segurança pública e dispõe de infraestrutura precária, fenômeno que salta aos olhos de qualquer observador.

Na semana passada, o governo apresentou a proposta de Orçamento para 2011, prevendo mais folga para os gastos públicos e superávit primário menor. Há risco nisso? SENNA: Nos últimos tempos, deu-se uma ênfase exagerada ao conceito de resultado primário das contas públicas. Não que isso não seja relevante, claro que é. Mas não é tudo. Fico preocupado não apenas em ter um belo resultado primário, que nos leve a um resultado nominal bem melhor; preocupo-me também com o nível de dispêndio e com o nível da carga tributária e dos investimentos em infraestrutura.

Posso ter um resultado primário de 3% do PIB com carga tributária de 36% ou com carga de 25%. Prefiro uma economia com carga de 25%. No mundo emergente, não se tributa com essa voracidade a sociedade como no Brasil. Acho que a nova proposta não representa um avanço na direção que considero correta.

Só perpetua a atual situação.

O senhor lançou há pouco um livro ("Política monetária ideias, experiências e evolução") em que faz uma análise do conceito de moeda e das políticas de estabilidade ao longo da história. O Brasil aparece bem nessa foto? SENNA: Historicamente, não.

No Brasil colonial, por exemplo, a existência de moedas privadas levava a uma anarquia monetária.

Mas a situação agora é outra. Talvez pela primeira vez na nossa História tenhamos um regime monetário comparável ao que prevalece nas economias desenvolvidas. Essa é uma conquista recente, de pouco mais de dez anos. Pelo menos nessa fase, o país está bem na foto.