Título: O valor de uma amizade
Autor: Feuerwerker, Alon
Fonte: Correio Braziliense, 05/07/2009, Política, p. 4

Se na Presidência Dilma topar com uma estatal ou um ministério que tenham problemas político-administrativos tão graves quanto os do Senado de hoje, ela vai dar cartão vermelho aos responsáveis ou vai manter a mesma turma, por conveniência?

No processo contra o senador Renan Calheiros em 2007 e na disputa de fevereiro último pelo comando do Senado escrevi que o ímpeto renovador do PT naquela Casa parecia apenas a máscara a encobrir um apetite exacerbado pelo poder. O partido achou em certo momento que acirrar a crise faria o Senado cair no seu colo. E tratou de acirrá-la. Até por saber que não faltaria matéria-prima. Sabido, esse PT.

Agora, poucos meses depois, os petistas do Senado caminham para endossar o sistema de mando que lá atrás, por motivos supostamente republicanos, queriam derrubar. A guinada acontece precisamente quando o establishment senatorial ¿ que o PT prometia combater ¿ está enfraquecido, nu diante do público.

Uma desculpa é o medo de perder o PMDB na sucessão presidencial. Daí a forcinha ao enrolado presidente do Senado, José Sarney (AP). Por que o PT não sentiu o mesmo medo quando lançou Tião Viana (AC) para concorrer com Sarney em fevereiro? Quem pode explicar?

De todo jeito, é mau sinal Luiz Inácio Lula da Silva cair assim, só com o barulho da bala. Só na base do grito, da ameaça. Se o PMDB tem tanta capacidade de intimidação no governo de Lula, como será num governo sem Lula?

Haveria uma razão para não levar a desculpa muito a sério. Quem manda no PMDB é o presidente do partido e da Câmara dos Deputados, Michel Temer (SP). Ele não derramará uma lágrima se o PMDB do Senado afundar. Temer é candidatíssimo a vice de Dilma Rousseff e não vai arrastar o partido ao suicídio apenas por causa dos senadores peemedebistas, que aliás são adversários internos dele. Se Temer ameaçar o Planalto por causa de Sarney, estará blefando.

Dilma veio sexta-feira em defesa do presidente do Senado. Disse que as críticas não devem ser personalizadas. E que remover gente em certas situações é uma maneira de não atacar os problemas. Eu fiquei com uma dúvida. Se na Presidência Dilma topar com uma estatal ou um ministério que tenham irregularidades políticoadministrativas tão graves quanto as do Senado de hoje ela vai dar cartão vermelho aos responsáveis ou vai manter ¿ por conveniência ¿ a mesma turma, pedindo apenas que, por favor, eles consertem o que fizeram de errado?

A ministra pode responder dizendo que não é bem assim, que Sarney tem um mandato a cumprir na função. Mas a diretoria da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC) também tinha, e Dilma deu um jeito de trocar quando achou que devia, na crise do transporte aéreo. Aliás, removeu aliados dela. Cortou na própria carne. Por que o Senado não pode, soberanamente, buscar um arranjo político que preserve a maioria governista mas represente uma ruptura com os absurdos cometidos na administração do dinheiro do povo?

O problema de reduzir tudo a ¿luta política¿ é que não sobra espaço para a defesa do interesse público. Há disputas em tudo que envolve a política. E daí? Dizer que a oposição quer criar dificuldades para o governo é afirmar uma verdade permanente. Por acaso isso justifica que a sociedade deva conviver com os malfeitos? Só para ajudar o governo?

Será péssimo para Lula e Dilma se uma impressão firmar-se: quem apoia o governo ganha o direito de ultrapassar certos limites, vedados aos demais. Aliás, em política externa é o que Lula vem sinalizando nas últimas semanas. Há os maus golpistas, como os de Honduras, e os bons ditadores e genocidas, como alguns da África recentemente visitada pelo presidente. Aos amigos, tudo; aos inimigos, os princípios morais. Como é bom ser amigo de Lula!

Governabilidade conquista-se de vários modos. Um deles é dividindo poder. Disciplina em que aliás o PT sempre sofre para passar de ano. Mas distribuir poder não significa fechar os olhos a ações lesivas ao erário. Ou não deveria significar. O PMDB, como maior bancada, tem o comando do Senado. Que continue tendo, desde que apresente uma fórmula aceitável, do ângulo do interesse público. Se não for capaz, melhor sair de cena.