Título: Incoerência ambulante
Autor: Pacca, Renato
Fonte: O Globo, 05/09/2010, Opinião, p. 7

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou os peritos do INSS que estão em greve e reivindicam redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais. Em tom irônico, disse que acha muito engraçado que no Brasil as pessoas queiram trabalhar menos. Segundo ele, virou mania querer trabalhar 30 horas e logo todos vão querer ganhar sem trabalhar.

Ocorre que o presidente acaba de sancionar a Lei n o12.317, de 26 de agosto de 2010, fixando a duração do trabalho do assistente social em exatas 30 horas semanais, o que nos faz lembrar a época em que o Congresso Nacional votou a derrubada da CPMF e Lula buscou inspiração na obra de Raul Seixas para justificar sua súbita e apaixonada defesa da contribuição que outrora tanto criticou.

De olho nos valores que engordavam o orçamento, o presidente esqueceu todas as raivosas críticas contra a CPMF, assim como varreu para debaixo do tapete sua oposição à Lei de Responsabilidade Fiscal, ao Proer, ao Plano Real, entre outros assuntos, achando melhor se assumir como uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

A obra do genial cantor e compositor baiano, contudo, não pregava mudanças políticas repentinas por força de interesses de ocasião. Lula se apropria das ideias de Raul Seixas para que caibam em sua própria retórica, expondo-se não como uma metamorfose ambulante, mas antes como uma verdadeira incoerência ambulante.

No caso dos assistentes sociais, o texto legal deixa expresso que aos profissionais com contrato de trabalho em vigor na data da publicação da lei é garantida a adequação da jornada de trabalho, vedada a redução de salário.

Quem pagará a conta? Hospitais, escolas, creches, clínicas, ONGs, entidades de beneficência em geral e todas as demais instituições do terceiro setor que empregam assistentes sociais em seus quadros e que, de um dia para o outro, sem qualquer regra de transição, foram surpreendidas pela inesperada redução da jornada de trabalho dos profissionais contratados, sem a respectiva diminuição salarial compensatória, o que poderá gerar demissões e desemprego no mercado.

Ao criticar os peritos do INSS em greve pela jornada de 30 horas semanais, cinco dias após ter sancionado a lei que garante o mesmo direito aos assistentes sociais, o presidente revela-se mais preocupado com os danos que possam ser causados à imagem de seu governo do que com a coerência de ideias.

As convicções de Raul Seixas certamente eram mais profundas.