Título: Plantão de alto risco
Autor: Araújo, Vera; Belmont, Mariana
Fonte: O Globo, 06/09/2010, Rio, p. 13

Polícia prende estudante de Medicina atendendo pacientes em hospital da Baixada

SILVINO MAGALHÃES após ser preso, no Hospital das Clínicas de Belford Roxo: falso médico tinha carimbo com número do Cremerj, que é proibido para estudantes

Uma equipe da Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Saúde Pública (DRCCSP) prendeu, na manhã de ontem, Silvino da Silva Magalhães, estudante do 9º período de Medicina da Universidade de Nova Iguaçu (Unig), atuando ilegalmente como médico. Ele foi flagrado dando consultas como ginecologista no Hospital das Clínicas de Belford Roxo, na Baixada Fluminense. O estudante, de 41 anos, atendeu quatro mulheres pela manhã ¿ a última delas foi uma policial que se passava por paciente e que o prendeu em flagrante. Segundo o delegado titular da DRCCSP, Fábio Cardoso, Silvino usava um carimbo com o próprio nome e o número de registro no Conselho Regional de Medicina (Cremerj) de um outro profissional. Além disso, ele tinha, na maleta, o carimbo do dono da clínica, o médico Deodalto José Ferreira.

O estudante Silvino afirmou que atendia há dois anos na clínica como acadêmico, auxiliando os médicos. Segundo ele, o profissional de plantão ontem foi fazer uma cirurgia e, por isso, ele teria feito um pré-atendimento a algumas pacientes. Ao ser perguntado se já havia prescrito receitas, ele se calou.

No último domingo, O GLOBO denunciou que hospitais, médicos e cooperativas contratavam estudantes de Medicina para atuarem como profissionais, principalmente para fugir dos plantões de fim de semana. Os alunos receberiam de R$200 a R$1 mil. O caso veio à tona depois da morte, no mês passado, da menina Joanna Marcenal, de 5 anos, atendida por um estudante do 4º período de Medicina. O falso médico Alex Sandro Cunha chegou a prescrever remédios controlados para Joanna. Segundo o delegado, desde a reportagem do GLOBO, o número de denúncias recebidas pelo telefone do Disque-Denúncia (2253-1177) e encaminhadas à delegacia cresceu sete vezes:

¿ Recebíamos uma média de cinco denúncias por semana. Na semana passada, foram 35, a maioria na Baixada Fluminense e na Zona Oeste.

Outro suspeito teria fugido dos policiais

De acordo com o delegado, o Hospital das Clínicas de Belford Roxo é conveniado ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cardoso contou que o estudante alegou estar sendo supervisionado, mas não havia médicos no hospital no momento do flagrante. Testemunhas ouvidas pelo delegado disseram que um boliviano, que também se passava por médico, estaria atendendo na clínica, mas fugiu ao perceber a presença da polícia. O delegado desconfia que ele seja um dos médicos oriundos de países da América do Sul que vêm trabalhar no Brasil, embora não estejam legalizados no Cremerj.

Também foram encontrados com o falso médico receitas assinadas e carimbadas por outros profissionais, além de um receituário especial de cor azul, que autoriza a compra de remédios controlados. O delegado Fábio Cardoso informou que Silvino Magalhães responderá pelos crimes de exercício ilegal da Medicina (seis meses a dois anos de prisão) e uso e falsificação de documentos (de um a cinco anos de prisão). O estudante vai permanecer preso, a menos que um juiz determine a soltura. Cardoso disse ainda que o dono da clínica será intimado a depor:

¿ Vamos verificar as fichas médicas para saber quantas pessoas ele atendeu nesse tempo.

No momento do flagrante não havia nenhum diretor ou representante da clínica no local. Segundo a funcionária que estava na recepção, o celular do proprietário estava desligado e ela não poderia informar o número.

A dona de casa Helena Valéria Valentim, de 29 anos, foi uma das pacientes atendidas pelo estudante na manhã de ontem. Após ter sofrido um aborto espontâneo em casa, ela procurou o Hospital da Posse e foi encaminhada à clínica em Belford Roxo. Segundo ela, Silvino se apresentou como ginecologista e obstetra e fez o exame de toque nela, além de prescrever uma vacina.

¿ Graças a Deus a polícia estava aqui, do contrário, ele ia fazer uma curetagem em mim ¿ disse Helena. ¿ Ganhei meu primeiro filho nesta clínica, no ano passado, e não tive problema algum.

O presidente do Cremerj, Luís Fernando Moraes, afirmou que, quando o órgão recebe denúncias de estudantes exercendo ilegalmente a profissão, encaminha os casos à polícia:

¿ Isso é um caso de crime contra a saúde pública, de exercício ilegal da Medicina e falsidade ideológica, por isso, quem tem que investigar é a polícia. De qualquer forma, no âmbito do Cremerj, cobramos a responsabilidade de quem contrata, do diretor técnico, e fazemos um procedimento interno para investigar. Às vezes, a pessoa que contrata não sabe que se trata de um estudante. Por isso, em cada caso, temos que saber o que houve de fato, se o diretor técnico foi iludido.

Segundo Moraes, no próprio site do Cremerj é possível averiguar a situação do médico e seu CRM.

¿ Em tese, podemos pensar que está havendo algum descaso na contratação dessas pessoas. Quanto a médicos que contratam estagiários para dar o plantão, isso é irregular. Não se deve colocar ninguém para trabalhar por você, e se você não está em condições de trabalhar, deve colocar um médico de verdade para substitui-lo, não um estudante ¿ opina o presidente. ¿ A polícia vem fazendo bem o seu papel de coibir esses casos, trabalhando sempre em contato conosco.

O presidente do Cremerj esclareceu que um estudante pode dispor de um carimbo de acadêmico em qualquer período do curso, desde que o carimbo o identifique como tal:

¿ O estudante também pode receitar, desde que supervisionado pelo médico, e, nesse caso, ele pode usar seu carimbo de acadêmico. O ideal, nesses casos, é que o médico carimbe junto com ele.

Moraes ressalta que não existe número de CRM de estudantes:

¿ O CRM é só para médicos. Se esse estudante usa um carimbo com um número de CRM, então a situação é mais grave ainda.

A atuação ilegal de estudantes de medicina como profissionais nos hospitais ganhou repercussão com o caso da menina Joanna Marcenal, de 5 anos, que morreu no dia 13 de agosto após passar 26 dias em coma no CTI de uma clínica em Botafogo. Ao passar anteriormente pelo Hospital Rio Mar, na Barra, a criança foi atendida pelo estudante Alex Sandro da Cunha Silva, que deu alta para a menina, apesar de ela estar desacordada. O caso foi mais um detalhe do drama envolvendo a morte de Joanna: o pai, André Martins, é acusado de maus tratos, que teriam causado ferimentos na menina.

Na sexta-feira, o Ministério Público ofereceu denúncia à 3ª Vara Criminal da Capital contra Alex e a médica Sarita Fernandes Pereira, plantonista responsável pela emergência pediátrica do Hospital Rio Mar. A médica está presa e o estudante é considerado foragido.