Título: Dúvidas sobre o futuro
Autor:
Fonte: O Globo, 06/09/2010, Opinião, p. 6

Costuma ser dito que, numa perspectiva de meio século, quando os historiadores escreverem sobre os governos FH e Lula, eles os tratarão como um ciclo único, assentado numa visão econômica comum. Distantes do vozerio do debate político conjuntural, os analistas, afirma-se, darão mais peso às coincidências no manejo de políticas de estabilização da economia - administração dos gastos públicos, juros e câmbio flutuante - do que às divergências entre PT e PSDB, muito alimentadas pelas batalhas eleitorais paulistas.

É possível. Deve inclusive servir para a argumentação de historiadores o fato de as maiores lideranças dos dois partidos, que se revezaram no poder em Brasília nos últimos 16 anos, terem resistido à ditadura militar de 64/85 lado a lado. O divórcio viria na recusa de Lula a, junto com FH, lutar pela consolidação das liberdades no Brasil pela via da social-democracia, e preferir fundar um partido classista, à esquerda. Muito tempo depois, após ser derrotado por FH em duas eleições presidenciais consecutivas, Lula se curvaria ao entendimento do sociólogo Fernando Henrique Cardoso de que a esquerda, sem alianças à direita, jamais ganharia uma eleição presidencial no Brasil. Tampouco governaria. O tucano estava certo, bem como ao instituir, na sua gestão, pilares para a estabilização da economia: Lei de Responsabilidade Fiscal, Banco Central com autonomia operacional tácita - ainda falta formalizá-la -, metas de superávit nas contas públicas, para evitar o descontrole no manejo da dívida, e câmbio flutuante. O PT sempre foi crítico de tudo, votou contra a LRF, não se cansou de atirar contra a política monetária (juros), mas, ao chegarem ao poder, Lula e equipe tiveram a clarividência de manter a política macroeconômica. Não titubearam em subir os juros e controlar despesas para conter a inflação.

Mas há nuances entre o primeiro e o segundo governos Lula que levantam dúvidas sobre esta homogeneidade de política econômica. Ou pelo menos acerca da sua manutenção. Foi visível, e ficou registrada nas estatísticas, a mudança de ênfase no manejo de instrumentos de política macroeconômica quando o ministro da Fazenda Antonio Palocci saiu do governo e chegou à Casa Civil a ministra de Minas e Energia Dilma Rousseff. Junto com Guido Mantega, substituto de Palocci, Dilma defendeu e Mantega conduziu uma política fiscal expansionista, numa velocidade e dimensão que, pelo demonstrado à frente da Fazenda, Palocci não executaria. A crise mundial, deflagrada no final de 2008, e os impactos recessivos no Brasil foram usados como álibi para o Palácio, sob nova influência, apertar o acelerador das despesas. O sentido expansionista da política era correto, indicado para servir de barreira às ondas de impacto recessivo. O conteúdo, errado: em vez de gastos em investimentos, que podem ser dosados em função da conjuntura macroeconômica, despesas em custeio (salário do funcionalismo, previdência), impossíveis de serem cortadas numa eventualidade.

Pode-se argumentar que mais gastos ou menos é questão de ênfase, sem mudar a essência. Há, no entanto, um quadro mais amplo por trás dessa mudança de ênfase: um projeto de instituição do "Estado forte", do qual o restabelecimento de parte do monopólio da Petrobras é parte.

A depender da evolução deste projeto, os historiadores do futuro identificarão no segundo mandato de Lula o início de uma nova fase no Brasil, na verdade um retorno ao sonho estatista cultivado em parte do regime militar, contra o qual Lula e FH lutaram.