Título: O nuncantismo
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 10/09/2010, Economia, p. 32

O Banco Central ontem anunciou mais um avanço brasileiro: as taxas de juros de equilíbrio podem ser mais baixas. Equivale a dizer que o país precisa de menos juros para manter a inflação sob controle. O IBGE divulgou na quarta-feira uma série de dados mostrando várias boas notícias. O país avança, só não é nunca antes. Avança como antes, em alguns pontos devagar, em outros mais rapidamente.

Uma das mais irritantes obsessões do governo atual é a apropriação indébita do mérito alheio, expresso no nuncantismo. Na ata do Copom, a excelente notícia que o Banco Central deu é que a potência da política monetária é maior, o que pode levar a taxa de juros para níveis mais baixos. O BC precisa explicar melhor sua afirmação e deve fazê-lo no próximo relatório de inflação, e assim acabar com algumas dúvidas que surgiram nos últimos meses sobre sua comunicação com o mercado. Mas até esse ritual de reuniões, atas e relatórios foi institucionalizado antes do governo Lula.

O pior do nuncantismo é que ele emburrece e desinforma.

Levado a extremo eliminará Pedro Álvares Cabral para entregar o feito do descobrimento ao próprio Lula.

Além disso, o cacoete do presidente produz desperdício de esforços. Gasta-se um tempo enorme, páginas de jornais, minutos de mídia eletrônica para repor os fatos e dar os méritos a quem os tem em cada etapa do processo histórico do país.

O IBGE está ainda protegido desse vírus que hoje inutilizou parte do Ipea como centro de inteligência lá ainda resistem alguns devotos do pensamento livre; poucos, mas valorosos.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios exibiu um retrato desse processo de evolução pegando o período desde o fim do governo Collor. Estão lá erros, omissões e vitórias de três governos: o curto período de Itamar, oito anos de Fernando Henrique e sete anos de Lula. O resultado anima e desanima, depende do que se olha e como se olha.

Na informação conjuntural dada pelo Banco Central, ontem, o que se vê é também o quadro de um filme. A hiperinflação derrubada em 94 levou a um corte com o passado com grandes reflexos nos anos seguintes. A nova ordem monetária foi garantida e depois consolidada. Mais recentemente, no governo Lula, tem sido possível ampliar o crédito e agora oxalá o BC tenha razão ter taxas de juros que, com movimentos menores, mais sutis, evitem qualquer elevação indesejada da taxa de inflação. Com o IPCA de 0,04% de agosto, o país completa três meses de inflação zero, o que, num contexto de crescimento forte, melhoria de renda, aumento de emprego, é uma excelente notícia. Cada ponto da melhoria de renda é capturada pelo seu dono o trabalhador, a trabalhadora e as pessoas preservam seu poder de compra.

Que diferença com o antes, o muito antes, quando perdia-se metade do salário real num mês. O IBGE mostrou que houve um salto ornamental na renda após a queda da inflação no Plano Real. Tão alto de 43% nos primeiros dois anos, que até hoje, mesmo com o aumento da renda desde 2004, não interrompida nem mesmo no ano de crise de 2009, o país ainda não voltou ao melhor ano da renda do trabalhador que foi 1996. Outra excelente notícia: desde 2001 cai sistematicamente a desigualdade de renda.

A educação avança morosamente e reduziu o passo em alguns indicadores.

O mercado de trabalho acelerou a melhora, com a elevação do percentual dos trabalhadores do mercado formal. Ainda assim, o Brasil tem 22 milhões de trabalhadores informais, oito milhões de desempregados, e quatro milhões de brasileiros trabalhando antes dos 17 anos. Pior é ter ainda um milhão de crianças, de cinco a 13 anos, trabalhando, quando deveriam estar apenas estudando e brincando.

O passo de cágado do avanço do saneamento é uma vergonha nacional.

Melhorar, melhoramos, mas ninguém pode se vangloriar de um fato até estranho: o encolhimento de 59,3% para 59,1% de domicílios com esgoto ou fossa séptica ligada à rede coletora.

Isso acontece após dois anos de funcionamento do PAC que, a julgar pela ensurdecedora publicidade do governo, é o coração do nuncantismo.

Herdeira do defeito lulista de negar o mérito alheio e inflacionar o próprio, a candidata Dilma Rousseff poderia ter diante desse dado de saneamento uma epifania: a de que os dados são teimosos e os fatos se impõem por si mesmos, independentemente do que diga o marketing.

É bom para todos que o Brasil tenha avançado no passado, esteja avançando agora e se prepare para novos avanços.

É natural comemorar o próprio êxito, o que não é honesto é negar o dos outros.

Nem honesto, nem produtivo, porque sem aprender com os acertos alheios e os próprios erros, certamente, ninguém consegue acertar o passo, insistir no que deu certo, preparar o caminho para novas arrancadas. Entende-se que numa campanha todos ressaltem os próprios acertos, mas o problema do presidente Lula é que ele faz isso antes, durante e depois das campanhas.

Na quarta, Lula disse que só agora o Brasil é independente e enfrenta as outras nações. Deu como exemplo a briga na OMC contra o subsídio do algodão dos Estados Unidos.

Quem começou a briga foi Pedro de Camargo Neto, no governo Fernando Henrique.

A propósito: a expressão usada por Lula para definir os Estados Unidos, o elefante que se borra, é... como dizer... Melhor nem tentar definir. Perda de tempo. Todos sabem que presidentes não falam assim de países com quem temos densas, intensas e produtivas relações econômicas e políticas.

oglobo.com.br/miriamleitao e-mail: miriamleitao@oglobo.com.br COM ALVARO GRIBEL