Título: Retrocesso do atraso
Autor: Corrêa, Maurício
Fonte: Correio Braziliense, 05/07/2009, Opinião, p. 19

O ímpeto por reforma constitucional do presidente venezuelano tem feito escola na América Latina. Os 10 anos em que permaneceu à frente do governo não teriam sido suficientes para consolidar os planos da revolução bolivariana. Desejoso de transformar em realidade ambições políticas pessoais, submete à aprovação do Poder Legislativo emenda constitucional que lhe permita governar o país quantas vezes queira. Obtida a aprovação parlamentar, o texto é levado a referendo, como ordena a Constituição, mas o eleitorado o rejeita. Com energia revigorada e disposto a buscar resposta favorável, espera passar certo tempo e outro referendo é apresentado à nação, logrando dessa feita a aprovação popular. Pouco importa saber quais foram os expedientes utilizados, pois o que vale é que pode agora candidatar-se indefinidamente a presidente da República.

No Equador, o presidente Rafael Corrêa reelegeu-se recentemente para novo mandato presidencial. Na Bolívia, a nova ordem constitucional permite a reeleição. O presidente Evo Morales já anuncia sua candidatura e proclama que será reeleito com mais de 75% dos votos do eleitorado. Embora não sendo da tradição na América Latina a reeleição presidencial, não se pode negar que hoje vários países do continente a admitem. No Brasil, a regra era de que o presidente não poderia se reeleger. No governo passado, emenda constitucional foi introduzida no sistema eleitoral pátrio, o que permitiu a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Lula também se reelegeu. Tudo indica que continuará a regra a prevalecer para o futuro. Acredita-se, assim, que não será fácil daqui para frente derrubá-la. Aliás, pouca gente fala nisso.

O problema crucial não está relacionado especificamente com o instituto da reeleição. O mal está no risco de convertê-la em forma de permanência sem limites no poder, tal qual acontece atualmente na Venezuela. Hugo Chávez não usou diretamente de força para conquistar as modificações constitucionais que lhe garante mandatos permanentes. Pelo contrário, pode-se dizer que as logrou democraticamente pela livre manifestação da vontade popular. O exercício na Presidência facilitou-lhe os meios para que possa conservar-se no cargo. Como a miséria campeia nos países da América Latina, não é difícil supor que os detentores do poder com o emprego da máquina do Estado, ao distribuírem benesses em forma de assistencialismo, cativem a preferência dos eleitores. Com esse e outros favores generosamente concedidos a estamentos sociais é que Chávez fez as reformas que visualizou para repetir os mandatos que desejar.

Não é de presumir que o mesmo fato venha a acontecer no Brasil. O Estado Democrático de Direito aqui vigente não o toleraria. Felizmente, o próprio presidente da República afastou a ideia de um terceiro mandato. A proposta de emenda constitucional há dias encaminhada por um parlamentar, com essa finalidade, foi sumariamente arquivada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. O sucesso do Bolsa Família é mais do que conhecido por sua pujança eleitoral. O eleitorado que votou na reeleição de Lula situa-se preponderantemente nas camadas mais necessitadas. Pelo menos, diante do quadro propício, parece que a eleição para um terceiro mandato poderia ser exitosa. É a recompensa dos valores que todos os meses são repassados aos beneficiários do favor oficial.

A influência dos métodos de Chávez povoou de fantasia a cabeça do presidente Manuel Zelaya, de Honduras. A soberania do país não pode comprometer-se com captação ideológica de exportação da bravata bolivariana. A insistência para a realização de referendo que autorizasse emenda na Constituição do país, para permitir-lhe concorrer a mais um mandato, foi a causa da indignação dos militares, que culminou com a deposição do presidente. É o vírus do estilo Chávez que está a infestar o comportamento de chefes de Estado da América Latina. Certo ou errado o intento de Zelaya, não é com o emprego de forças militares que se corrigem os desvios perpetrados.

Não é o caso de querer defender a ação dos militares de Honduras. O país possui mecanismos constitucionais e legais que podem ser acionados contra atropelos à Constituição. Na quadra em que as democracias do planeta atravessam é um inqualificável absurdo saber que militares invadem a residência do supremo mandatário da nação, eleito pelo povo, prendam-no e o expulsam do país de forma truculenta e arbitrária. Não podia ser diferente a reação da Organização dos Estados Americanos (OEA), da Organização das Nações Unidas (ONU) e de muitas outras entidades internacionais de defesa da democracia, que exigem o retorno do presidente a seu país e ao cargo que exerce.

É constrangedor que os militares que usurparam o poder em Honduras não tenham aprendido as lições da história. Afinal, o país não é uma republiqueta sem lei daquelas então perdidas nas savanas da África. Somente o parlamento hondurenho, no julgamento do processo de impeachment, é que tem legitimidade para afastar o presidente do cargo. Os militares do país não estão acima da lei e da Constituição. Em Honduras, consumado verdadeiro retrocesso do atraso, eles a rasgaram.