Título: Caso Erenice tem de ser passado a limpo
Autor:
Fonte: O Globo, 17/09/2010, Opinião, p. 6

É possível que a ainda ministra-chefe da Casa Civil Erenice Guerra tenha imaginado se escudar politicamente quando partiu para atacar o candidato José Serra, chamado por ela, em nota, de aético e já derrotado. Como o guardachuva do argumento de que tudo não passa de futrica eleitoreira costuma ser amplo e generoso, também é provável que Erenice, antiga militante petista, imaginasse que estripulias lobistas do filho pudessem ficar sob esta sombra protetora.

A tática do ataque como melhor defesa não se mostraria adequada para salvar Erenice Guerra. Afinal, ao politizar a defesa, a ministra ajudou a contaminar ainda mais o seu caso pelo embate eleitoral. Tudo o que o Planalto e sua candidata queriam evitar. Depois de publicada pela Veja a denúncia de que Israel Guerra se imiscuíra em pelo menos um negócio entre um fornecedor privado de serviços (MTA) e uma estatal (Correios), o as sunto não morreu, para desgosto do governo e da mãe de Israel. E ainda serviu para que a imprensa descobrisse como a família de Erenice havia construído a tradição de sobreviver à custa do contribuinte, em empregos na máquina pública, relacionados de maneira evidente à ascensão da ilustre parente.

A desfaçatez com que o governo se comportou quando explodiu a história de invasão de arquivos da Receita com finalidade política não poderia ser repetida com Erenice. A publicação, pela Folha de S.Paulo de ontem, de outra denúncia tornou Erenice Guerra fardo pesado demais para o governo e a campanha de Dilma Rousseff, a quem a ex-ministra é (ou foi) ligada.

Rubnei Quícoli, consultor da EDRB, de Campinas, relatou que a empresa, interessada em instalar uma central de energia solar no Nordeste, não conseguia que um pedido de empréstimo ao BNDES tramitasse.

Diante da dificuldade, foilhe sugerida a rota da facilidade: Israel Guerra. Houve até reunião com a mãe. A empresa, relatou Quícoli, não aceitou a pedida de Israel, e o lobby se frustrou. A denúncia, sustentada em provas documentais (e-mail, minuta de contrato com a firma de Israel), mostrou a Lula que não havia blindagem possível para conter o poder de corrosão do escândalo.

Antes, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, declarara serem graves as notícias sobre a ação do filho da ministra. Tinha razão.

Agora, há à frente uma bifurcação: de um lado, o risco de, com a defenestração da mi-asnistra, tentarem enterrar o caso, como ocorreu no dos aloprados; de outro, a rota acertada da investigação séria, profunda, por meio de instrumentos adequados do Estado, como o Ministério Público e a Polícia Federal.

Interessará ao governo, por óbvio, a primeira opção. À sociedade, a segunda.

Um trabalho sério de apuração poderá servir para delimitar os espaços público e privado, tão misturados neste governo. Como a doença nacional do patrimonialismo chegou a uma fase aguda, passar esta história a limpo servirá de advertência a grupos políticos interessados em subordinar o Estado a seus interesses.

Outro aspecto é que, numa sociedade que se pretende aberta, não há abuso no poder de informar. Engana-se o ex-ministro José Dirceu. Publicam-se fatos e comentários; se alguém os considera falsos e caluniosos, que a Justiça decida o conflito. Se não, que ocorram os devidos desdobramentos.