Título: O projeto que liberta livros para a população
Autor: Lima, Ludmilla de
Fonte: O Globo, 19/09/2010, Rio, p. 28

Iniciativa da Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu distribui gratuitamente exemplares na rua e até na cadeia

O SECRETÁRIO ADJUNTO Júlio Ludemir (à esquerda) recebe exemplares de Marcos Alvito, que decidiu colaborar com o projeto Livro Livre

JOVENS E A GARI Sueli da Silva Bispo examinam livros que foram ¿libertados¿ no calçadão de Nova Iguaçu

HELOÍSA BUARQUE de Hollanda

A cena ocorreu no calçadão de Nova Iguaçu, na noite de quinta-feira. Em apenas dez minutos, numa ação da Secretaria municipal de Cultura, mais de 50 livros foram distribuídos ¿ ou melhor, ¿libertados¿ para a população. É assim que preferem dizer os integrantes do projeto Livro Livre, tocado pelo órgão, que já levou a ação a lugares como a carceragem da Polinter na cidade e um prostíbulo. Na semana passada, bastou o projeto ser anunciado pelo microfone de uma loja popular, para pedestres, vendedores e garis avançarem sobre as caixas com as publicações.

Com um ¿Dom Quixote¿, de Miguel de Cervantes, debaixo do braço, Humberto Junior, de 9 anos, saiu curioso do seu passeio pelo calçadão:

¿ Gosto muito de historinhas.

Apesar do corre-corre, o secretário de Cultura, Ecio Salles, tentava explicar a cada um a proposta do projeto:

¿ Vocês têm que repassar os livros adiante depois de ler. Têm que ¿libertar¿ os livros.

Iniciativa também ganha adesão no mundo acadêmico

Com a filosofia de que é preciso fazer com que os livros circulem e não sejam somente uma propriedade, a iniciativa vem ganhando adesões importantes no campo acadêmico. A professora da UFRJ, editora e crítica Heloísa Buarque de Hollanda e o professor de História da UFF Marcos Alvito são alguns dos nomes que já ¿libertaram¿ livros de suas estantes.

¿ Pela primeira vez, muitos terão a experiência da materialidade do livro ¿ diz Alvito, que participou do projeto com mais de cem exemplares de ¿A guerra na Grécia antiga¿, de sua autoria.

Ele esteve na ação organizada na Polinter. Secretário adjunto de Cultura de Nova Iguaçu, o jornalista e escritor Júlio Ludemir se impressiona até hoje com o que viu naquele dia: os presos ficaram animados e seguraram os livros recebidos para uma foto.

¿ Nós entregamos livros que tratam do universo deles, e a receptividade foi total, com direito à fala de que a sociedade estava, enfim, reconhecendo a existência deles ¿ lembra Júlio, autor de seis livros, entre eles ¿No coração do comando¿, um romance sobre uma história de amor entre presidiários de facções rivais.

Assim como ¿No coração do comando¿, Júlio já libertou exemplares de outro trabalho seu: ¿Lembrancinha do adeus: história(s) de um bandido¿, sobre uma espécie de Forrest Gump carioca.

Heloísa Buarque de Hollanda também é da tese que ideia não é propriedade. Por isso, promete continuar ¿libertando¿ livros de sua autoriza, além de colocá-los à disposição na internet:

¿ Eu sempre dei meus livros. Quando o projeto passa por aqui, eu vou ¿libertando¿ exemplares. Há um sentimento de status com a biblioteca, de fetiche com o livro. Mas ele é para circular, não para ficar na parede ¿ diz Heloísa.

Também autor de livros ¿ ¿Poesia revoltada¿, sobre o hip hop, e ¿História e memória de Vigário Geral¿, em parceria com Maria Paula Araújo ¿, Ecio confessa que sofreu na hora de colaborar com a campanha:

¿ ¿Libertei¿ 35 livros para nossa ação e foi muito doloroso. São mais de 90 milhões de brasileiros que saíram das classes D e E e estão agora na classe C, sendo chamados pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) de nova classe média. Essa galera está lendo, mas não é fácil comprar livro em Nova Iguaçu ou em Campo Grande. Como produto de consumo, é caro.

Seguindo essa ideia, a Secretaria de Cultura tenta estimular as pessoas a escreverem no blog do projeto (livrolivreni.wordpress.com) sobre a trajetória dos livros e aumentar o número de exemplares ¿libertados¿. Desde que foi criado, no fim de 2008, o movimento repassou cerca de 600 livros, todos por meio de iniciativas pessoais. Mas a meta para este ano é ambiciosa: entregar em apenas três dias de outubro ¿ 14, 15 e 16 ¿ dez mil volumes.

Editoras prometem dar sua colaboração para projeto

Para isso, haverá um encontro com a direção da editora Objetiva esta semana. A Record já entregou 300 livros como teste e a Jorge Zahar prometeu pelo menos mil. Há a expectativa de que a Ediouro também colabore. O grupo da Secretaria de Cultura tenta convencê-las a repassar livros que não foram vendidos e hoje ocupam espaço alugados, à espera de destruição. Com caixas nas mãos, os integrantes do Livro Livre sairão pelos bairros de Nova Iguaçu repassando o material adiante. A ideia é também promover nesses dias saraus e encontros com escritores ¿ já estão confirmados Joel Rufino e Luiz Ruffato.

Os leitores agradecem. A gari Sueli da Silva Bispo, de 55 anos, tentava, no meio de muita gente, garantir seu exemplar:

¿ Toda noite, pego alguma coisa para ler. Gosto muito de Machado de Assis.

Já a caixa Lívia Maria dos Santos levou para casa ¿Museu de coisas insignificantes¿, de Charles Kiefer:

¿ Leio mais a Bíblia. Mas vou ler este e passar adiante.