Título: A vida confinada no fundo do mar
Autor: Almeida, Cássia
Fonte: O Globo, 19/09/2010, Economia, p. 33

Para mergulhar a 300 metros, clausura por 28 dias e salário de R$35 mil num mês

FRANCISCO ALVES trabalhou 25 anos no mar

MARCOS PEDROSA (deitado), na câmara

DIOMEDES CAETANO (1º acima), Alexandre Macedo e Marcos Pedrosa

Uma carta em cima da geladeira é o sinal para o jovem Bruno começar a chorar. Seu pai vai ficar ¿quatro Faustões¿ longe de casa. Com essa despedida do primogênito Bruno, de 13 anos, e de Luiza, de 10 anos, começa a rotina do mergulhador Marcos Pedrosa, que há 17 anos fica confinado 28 dias numa câmara hiperbárica, só saindo para as profundezas do mar, no total de quatro meses do ano. Esse é o prazo máximo permitido por lei para esse trabalho no Brasil. São poucos os que se atrevem a descer a 300 metros de profundidade para consertar e fazer a manutenção das plataformas de produção de petróleo e gás da Petrobras e de outras empresas. O salário de até R$35 mil brutos, quando há mergulho profundo, é um dos atrativos. Sem mergulhar, o ganho é em torno de R$4 mil. Mas todos são unânimes em afirmar que o mergulho é uma ¿cachaça¿. Pedrosa, nas folgas do mesmo tamanho do período de confinamento, diverte-se fazendo caça submarina.

¿ Não choro mais quando vejo meu pai ir embora. Só quando ele deixa as cartas, quando estamos dormindo ou na escola ¿ conta Bruno.

A partir dessa despedida, a família de Pedrosa será composta pelos três companheiros com que divide a vida dentro de uma câmara hiperbárica (dentro de um navio de apoio) por 28 dias seguidos. É o único trabalho confinado no planeta e o mais perigoso também. Semelhante a isso, somente fora da atmosfera terrestre, como os astronautas. A saída das câmaras antes do tempo necessário para despressurização pode matar. Os mergulhadores devem permanecer no compartimento de 28 metros cúbicos para se adaptarem à pressão atmosférica de trabalhar a cem, 200, 300 metros de profundidade, o que corresponde a um prédio de cem andares, como o World Trade Center, debaixo d¿água:

¿ Ficamos na câmara respirando uma mistura de gás hélio e oxigênio para nos adaptarmos à pressão no fundo do mar. Para mergulhar a 300 metros, precisamos ficar 24 horas respirando essa mistura antes de descermos ¿ explica Diomedes Caetano de Moraes, mergulhador há 28 anos, que pretende parar em breve ¿ Quero curtir minha netinha Maria Eduarda, de 2 anos, e namorar.

No meio da madrugada, pode surgir um chamado

Agora é Maria Eduarda que chora ao ver o pai sair para trabalhar embarcado. O genro de Caetano também é mergulhador, mas de águas rasas, sem confinamento. Nessa categoria, são cerca de mil trabalhadores, segundo Pedrosa que é diretor do Sindicato Nacional dos Trabalhadores Subaquáticos e Afins (Sintasa). Em águas profundas, são 150.

A escuridão é completa a partir dos 150 metros de profundidade. A luz do sol não penetra no local de trabalho desses mergulhadores. Somente as lanternas dos capacetes e do robô que grava os mergulhos iluminam as horas passadas no fundo do mar, que variam de três a seis horas, dependendo da profundidade.

¿ Após o trabalho, temos de descansar 12 horas. Depois disso, podemos ser acionados a qualquer hora. Dá vontade de desistir quando estamos dormindo, quentinhos, e somos convocados duas horas da manhã para mergulhar.

`São quatro churrascos até voltar para casa¿

Para contar o tempo, assim como o jovem Bruno, os mergulhadores usam o cardápio. No domingo, há churrasco; no sábado, feijoada; e cozido, na sexta-feira, todos servidos no navio. ¿São quatro churrascos até a volta para casa¿, contam.

O telefone dentro da câmara foi uma das maiores conquistas cinco anos atrás. Assim, é possível falar com a família todos os dias. O problema é a mulher e os filhos se acostumarem com voz modificada pelo gás hélio. Bruno, quando tinha 6 ou 7 anos anos, ao atender o telefonema do pai, chamou a mãe assim:

¿ Mãe, o Pato Donald quer falar com você.

O gás hélio deixa a voz como a de um pato, dificultando a compreensão.

Antes do telefone, o fax foi a novidade, ¿todo o mergulhador comprou um fax¿, conta Caetano. Até o advento do fax, as cartas eram o único meio de comunicação com a família. Confinado na câmara, a ociosidade é grande. Atualmente, há televisão com canais fechados e abertos e muitas revistas.

¿ Quando comecei a trabalhar, não tinha nada. Lia até bula de remédio. Tinha briga e discussão por tudo.

O confinamento cria situações dramáticas. A morte de um filho, da mãe, da mulher não pode ser contada ao mergulhador confinado. A família já sabe que deve dar essas notícias ao pessoal de apoio:

¿ Eles dão uma desculpa para antecipar a despressurização e retirar o trabalhador da câmara antes dos 28 dias. Às vezes, as pessoas ficam até oito dias sem saber o que aconteceu ¿ conta Caetano.

Doença da família é outra situação limite. Pedrosa conseguiu parar de mergulhar temporariamente por esse motivo. Não dava para ficar enclausurado, sem poder sair do navio com uma pessoa doente na família:

¿ Mesmo com minha renda diminuindo.

O salário do mergulhador cai sensivelmente quando não há mergulho profundo. A chamada indenização por desgaste orgânico é que faz o salário subir. São pagos R$40 por cada hora que ele passa na câmara, o que soma R$26.880 em 28 dias. Além disso, recebe salário base e diárias totalizando R$35 mil. Esse valor só foi conseguido após uma greve de nove dias em 2009, quando o valor da hora era de R$26.

Mas os ganhos já foram muito maiores e a insegurança no trabalho também. Não havia limitação para o período de saturação (como é chamada a pressurização com gás hélio). E ficava-se até 12 horas na água, marretando. Hoje, a marreta foi aposentada.

Francisco Moreira Alves trabalhou 25 anos no mergulho. Um anúncio que o vento trouxe procurando pessoas ¿corajosas e ambiciosas¿ o levou ao curso de mergulho. Chegou a ganhar quase R$70 mil por mês.

¿ Já tive lancha, seis carros, duas motos. Depois o salário foi achatando.

O trabalho inóspito é o sonho de Alexandre Macedo. Mergulhador de águas rasas, diz que pretende chegar um dia ao topo da carreira que é mergulhar profundo. Há exigências: três anos de carteira assinada em mergulho raso e curso nas escolas credenciadas pela Marinha.

¿ É o sonho de todo o mergulhador.