Título: Eles tentam a reeleição, nós pagamos a conta
Autor: Branco, Gil Castello
Fonte: O Globo, 21/09/2010, Opinião, p. 6

Há dois meses, o Congresso Nacional é um deserto. Como 524 parlamentares, entre deputados e senadores, estão em campanha para assumir cargos no Legislativo ou no Executivo, praticamente não há sessões, audiências públicas, trabalhos de comissões ou votação de qualquer projeto.

Alguns gabinetes estão fechados, enquanto outros funcionam a meia-boca. Os políticos vivem o ritmo frenético das eleições e nem tão cedo aparecerão em Brasília.

Apesar do marasmo no Legislativo, os parlamentares continuam recebendo normalmente os seus salários e benefícios.

Na Câmara dos Deputados, por exemplo, existe a cota para o exercício da atividade parlamentar, apelidada de cotão. Com essa verba os deputados pagam passagens aéreas, telefones, correios, manutenção de escritórios (condomínio, energia elétrica, acesso à internet, TV a cabo etc.), alimentação, combustíveis, entre outros itens. O valor do cotão varia conforme as diferenças de preços das passagens aéreas entre os estados e o Distrito Federal.

Mesmo sem ir à capital, os deputados federais gastaram com essa verba mais de R$ 6 milhões, entre agosto e a primeira quinzena de setembro. A locação de veículos automotores e embarcações custou R$ 1 milhão. Os serviços de consultorias consumiram quase outro milhão. Com telefonia, foi R$ 1,5 milhão. Apenas os deputados do Estado do Rio de Janeiro pagaram cerca de R$ 46 mil em combustíveis e lubrificantes, o que corresponde a quase 18 mil litros de gasolina.

Com o dinheiro da Câmara são contratados escritórios de advocacia, institutos de pesquisas e agências de comunicação e marketing. Os deputados são capazes de jurar que essas despesas nada têm a ver com as suas campanhas, mas ninguém fiscaliza com rigor esses serviços, supostamente prestados por conta do mandato.

A transparência dos gastos é precária.

No site da Câmara são informados apenas os valores pagos e os nomes das empresas beneficiadas. As notas fiscais não são divulgadas. Assim, localizar os endereços e os telefones dos fornecedores, bem como o que foi efetivamente realizado, é uma odisseia.

Em outros países, a transparência é muito maior. Na Casa dos Comuns do Reino Unido, os documentos relativos à verba indenizatória dos 650 membros especificam, claramente, o que foi contratado. Sem qualquer dificuldade, pode-se descobrir que a deputada Diane Abbott imprimiu cerca de 200 cartões de visita, na cor verde, ao custo de 219 euros, ou que o ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown pagou 25 euros para limpar a janela, por dentro e por fora.

Os jornais concorrentes The Guardian e The Telegraph divulgam as despesas em seus sites, convidando os eleitores a destrinchar as prestações de contas, a fim de encontrar eventuais ilegalidades. Existem, inclusive, áreas específicas nos portais com as melhores descobertas dos cidadãos e os reembolsos ilegais ou exagerados aos políticos.

Por aqui, a legislação da Câmara sobre o uso do cotão é, no mínimo, curiosa.

A Casa fiscaliza os gastos apenas quanto à regularidade fiscal e contábil da documentação, mas cabe exclusivamente ao deputado responsabilizarse pela compatibilidade legal do gasto. Algo como se as raposas tomassem conta dos galinheiros.

Considerando que as despesas com o exercício do mandato se confundem com as de campanha, fica no ar a dúvida se os recursos estão sendo utilizados em favor do interesse público ou pessoal.

É claro que além do cotão, outros direitos dos parlamentares em recesso poderiam ser questionados. A começar pelos salários. Ainda que possa parecer um sonho, 17 deputados estaduais do Paraná, na semana passada, abriram mão da remuneração nos dias parados, durante o chamado recesso branco. A bem da verdade, não tomaram essa decisão por reflexão ainda que tardia sobre a moralidade administrativa.

Agiram, sim, pressionados pela mídia e pelos eleitores, após amplo debate nos veículos de comunicação do estado. O fato pode não ter significativo impacto econômico, mas é relevante sob o ponto de vista ético.

Até porque nem todos os candidatos gozam da vantagem de receber vencimentos e cotas sem trabalhar no período pré-eleitoral.

É pouco provável que os deputados e senadores estejam dispostos a alterar a prática atual, legislando contra a causa própria. A esperança é que, a exemplo do Ficha Limpa, a sociedade, cada vez mais consciente, decida o óbvio: só devem receber salários os que trabalham.

GIL CASTELLO BRANCO é economista e fundador da organização não-governamental Associação Contas Abertas.