Título: O Brasil que fica cara a cara com o esgoto
Autor: Duarte, Alessandra
Fonte: O Globo, 03/10/2010, O País, p. 18

Carência de financiamento e demora na regulação fazem do saneamento o setor de infraestrutura que menos teve investimento de 2003 a 2009

passar todo dia na frente do seu portão em Boaçu. Também o sente no ar, com o cheiro do esgoto e os mosquitos. Às vezes, o descaso dá susto na filha de Pedro, Lorena, de 20 anos: é quando os ratos que passeiam pelo valão resolvem entrar na cozinha, na sala, no quarto...

¿ Já vi rato até no fio do poste ¿ conta Lorena, que acompanhou o horário eleitoral na TV e tem seus candidatos na ponta da língua. Ela espera que os próximos governantes invistam na educação, ¿para tudo poder melhorar¿.

Perguntada se estuda ou trabalha, diz que ¿já terminou¿.

O ¿terminou¿, para Lorena, é o ensino médio: ¿ Para faculdade pública, a gente não passa. E não tem dinheiro para particular.

A responsabilidade por prestar o serviço de saneamento é de estados e municípios. E a União também entra com verba para o investimento: por transferências diretas ou por financiamento por instituições como a Caixa Econômica. Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas, vê problemas nessa estrutura: ¿ O grande gasto com saneamento parte dos orçamentos dos próprios estados e municípios, além de financiamentos internacionais e da Caixa. Só que muitos municípios não têm capacidade técnica para elaborar e acompanhar projetos de financiamento, ou já estão no limite máximo de endividamento.

¿ O fato de estados e municípios compartilharem a titularidade da área já é um problema.

Não fica claro quem tem de fazer o quê. Mas nem governo estadual nem o municipal querem abrir mão, pelos dividendos políticos que uma área de cunho social rende ¿ diz o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas. ¿ Um segundo problema é que muitos estados e municípios não podem se endividar com empréstimo, pois são limitados por metas fiscais do governo federal, que passou a gastar mas deixou a corda no pescoço dos outros entes.

A disputa política pelo setor e o entrave para estados e municípios se financiarem são um dos

Alessandra Duarte ?¿ O Brasil de Pedro Raimundo Mendes fica de cara para o esgoto.

É uma bandeira do país pintada pelo próprio Pedro no muro de casa. Acontece que a casa do pedreiro de 56 anos tem como calçada um valão, que percorre toda a rua onde ele mora com a mulher, os filhos e o genro no bairro de Boaçu, em São Gonçalo, cidade da Região Metropolitana do Rio e segundo maior colégio eleitoral do estado. Há uma segunda bandeira, pintada numa ponte construída por Pedro para poder sair de casa. Mas o país representado na decoração verdeamarela da última Copa do Mundo só ajuda Pedro a atravessar o valão, não a acabar com ele ¿ segundo o IBGE, 56% do total de domicílios no país não são atendidos por rede geral de esgoto.

A situação da área é ainda um espelho para a desigualdade no país. Entre domicílios com rendimento mensal per capita de até meio salário mínimo no Norte, a cobertura é de 7,9%.

Entre aqueles com mais de dois mínimos no Sudeste, é mais de dez vezes maior: 91,6% não têm rede de esgoto.

A explicação para a baixa cobertura está na ausência crônica de investimentos e no gargalo de financiamento do setor. De 2003 a 2009, o total dos investimentos públicos e privados em saneamento não chegou a R$ 7 bilhões por ano, segundo a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).

No setor de infraestrutura, o saneamento é o patinho feio. Em 2009, por exemplo, a área de transportes recebeu R$ 19,6 bilhões; energia elétrica, R$ 18,6 bilhões; petróleo e gás, R$ 60,8 bilhões; telecomunicações, R$ 15,9 bilhões ¿ e o saneamento, R$ 6,8 bilhões. Entre 2003 e 2009, a área (cujo percentual do PIB, entre 1999 e 2009, não passou de 0,22%) ficou na lanterninha dos recursos para infraestrutura.

O resultado desse descaso, Pedro Raimundo Mendes vê passar eixos do problema. Outro é a falta de interesse do setor privado pela área, e de segurança jurídica para fazer com que ele se interesse.

Entre 2003 e 2009, do total de R$ 33, 9 bilhões investidos no setor, só em torno de 5% foram privados, diz a Abdib.

Se a rede já foi instalada, e a empresa privada entraria para geri-la, é mais fácil para a iniciativa privada se interessar, afirma Velloso. Mas se é para instalar a rede ¿ principal necessidade de um país com metade da população sem o serviço ¿, a regulação da área não daria garantias suficientes ao setor privado.

¿ Até 2007, quando saiu a Lei do Saneamento, a primeira a dar uma regulação geral ao setor, os órgãos que atuavam em saneamento agiam livremente. Não havia agências reguladoras, um governante poderia entrar e mudar as regras. Isso dava insegurança ao setor privado ¿ diz Paulo Godoy, presidente da Abdib, sobre a lei do setor, regulamentada só este ano. ¿ De 2007 para cá é que começaram a criar agências reguladoras estaduais. A lei também passou a condicionar a liberação de financiamento federal para os municípios ao fato de eles terem agência municipal ou se ligarem a uma estadual.

Enquanto União, estados e prefeituras não se entendem, o pedreiro Pedro, cearense de Santa Quitéria que chegou ao Rio nos anos 1980, tirou algum do bolso para fazer sua ponte: ¿ E para cimentar do outro lado do valão também. Até ano passado era tudo terra ¿ diz Pedro, lembrando que, na eleição para prefeito em 2008, a então candidata à reeleição, a prefeita Aparecida Panisset, foi lá com o então candidato a vereador Eduardo Gordo.

¿ Falaram que fariam obra aqui: ¿Amanhã! Amanhã o material está aqui!¿. Cadê? Amanhã, só Deus sabe.