Título: Nome: José Maria Ribeiro dos Santos
Autor: Benevides, Carolina; Lins, Letícia
Fonte: O Globo, 03/10/2010, O País, p. 17

As dificuldades e os sonhos dos brasileiros que chegam à vida adulta sem saber ler, escrever ou fazer contas

RIO e RECIFE. Chova ou faça sol ¿ ¿não tem descanso¿ ¿, José Maria Ribeiro dos Santos, de 65 anos, empurra uma espécie de carroça pelas ruas de Campo Grande, no Rio. É vendendo e comprando ferro velho que sustenta os nove filhos e a mulher, Rosimara, de 39 anos. José é o único da família que sabe escrever o nome, e fica envergonhado ao admitir que não sabe ler: ¿ Não consigo, mas acho que é problema de vista ¿ diz ele, que estudou até a 4asérie e queria ter ido adiante: ¿ Ia ter um emprego melhor, talvez pudesse até ser gari. Gari tem todos os benefícios, né? Fazer contas também não é tarefa fácil para José. A dificuldade com os números faz com que diga sem qualquer espanto que se casou com Rosimara em 1976 e que ela nasceu em 1973. Alertado, tenta corrigir as datas: ¿ Ela tinha 19 anos quando casou. Não sei fazer a conta para dizer em que ano foi isso ¿ diz, sendo observado pelos caçulas Jesus, de 4 anos, e Mateus, de 2, que não frequentam nenhuma creche.

Escrita, leitura e matemática: só 25% das pessoas dominam Como José, 75% dos brasileiros não dominam a escrita, a leitura e a matemática de modo que possam se expressar e entender o que está ao seu redor.

O dado, de 2009, é do Instituo Paulo Montenegro (IPM), que criou o Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional (Inaf).

De acordo com o Inaf, apenas 25% da população estão alfabetizados plenamente. O número de analfabetos funcionais, segundo o IBGE, também em 2009, chega a 29,3 milhões de brasileiros ¿ ou 20,3% da população.

¿ É preciso ficar claro que não basta colocar todo mundo na escola para resolver o problema do analfabetismo. Jovens têm ido à escola e estão saindo sem habilidade para ler e escrever, sem conseguir decodificar as informações ¿ diz Ana Lúcia Lima, diretora-executiva do IPM.

Aos 33 anos e no seu primeiro emprego formal, o pernambucano Elinton Sacramento Teixeira, conhecido como Garotinho, também só estudou até a 4asérie e tudo o que aprendeu foi a escrever o nome e frases curtas como ¿bom dia¿. Mas não saber ler causa em Garotinho uma frustração imensa. Ele queria ¿ler inteirinho¿ o livro ¿Geografia da fome¿, de Josué de Castro, autor que melhor explicou a simbiose entre homens e caranguejos, uma realidade bem próxima do morador da Ilha de Deus, comunidade erguida sobre o mangue.

¿ Comecei a pescar com 11 anos, e achava que estudo não era importante para quem vivia com tarrafa e samburá dentro de um barco. Então, no colégio não aprendi quase nada ¿ conta Garotinho, que trabalha no canteiro de obras na Ilha de Deus, onde o governo do estado de Pernambuco vem construindo casas de alvenaria em substituição às palafitas.

Segundo o apontador Adilson Simões de Souza, na obra trabalham 186 homens, 20% dos quais totalmente analfabetos.

Gente como Luciano José da Silva, de 30 anos, há quatro meses no serviço: ¿ Nunca fui ao colégio. Minha mãe é pescadeira, eu vivia no meio da maré. Comecei a trabalhar aos onze anos, catando caranguejo e ostra.

Quando vi o peixe minguar devido à poluição do rio é que senti a falta que o estudo faz.

Preciso aprender a ler, vou me matricular num colégio.

Morador da Praia do Ipiranga, em Magé, no Rio, Amauri Domingos Nascimento, de 48 anos, também nunca foi à escola.

Casado com Maria Tobias, que só sabe assinar o nome, ele vive no numa área sem saneamento, água potável e onde a luz, clandestina, só funciona até as 17h. O filho, Amauri Junior, de 10 anos, está na 1asérie do ensino fundamental, e só começou a estudar para que a família possa receber os R$ 134 do Bolsa Família. O dinheiro ajuda a compor a renda de R$ 200, que Amauri consegue fazendo biscates.

Bordadeira ¿ ¿basta olhar que aprendo na hora. Acho fácil, fácil¿ ¿, a carioca Aline Paula da Silva, de 20 anos, cursou até a 8asérie.

Mesmo assim, ao escrever, ainda troca o S pelo Z, e não consegue acompanhar filmes com legenda ¿ ¿passa muito rápido, não dá para ler¿. Aline trabalha na pequena confecção de Nilma de Fátima, de 48 anos, que estudou até a 4asérie, e queria ter tido a chance de ser pediatra.

¿ Sempre achei uma profissão linda, mas não cheguei nem perto. Tive que começar a trabalhar muito cedo, depois logo casei, tive filhos e acabei não sabendo muita coisa ¿ conta Nilma, que como Aline não consegue acompanhar filmes com legendas, mas sente-se triste mesmo por não conseguir ler e entender receitas médicas.

¿ Tenho que incomodar meus filhos ou uma amiga. A pessoa lê para mim, explica e escreve os horários. Só assim não me perco ¿ diz Nilma, que só faz contas com o auxílio de uma calculadora.

Para depender menos da ajuda dos amigos, a artesã Letícia da Silva Pereira, de 22 anos, voltou à sala de aula. Mesmo tendo cursado até a 4 asérie, ela resolveu recomeçar do início. Está matriculada no Centro Educacional Popular Saber Viver, na Ilha de Deus, em Pernambuco.

¿ Saí da escola sabendo só assinar meu nome. Agora, estou reforçando a leitura e já sei escrever um bilhete simplezinho ¿ comemora.

Para Mozart Neves Ramos, conselheiro do Todos Pela Educação, é preciso estimular a volta à sala de aula: ¿ O Brasil avançou no que diz respeito à educação básica, universalizou o ensino. Mas agora é hora de termos mais qualidade e de criarmos mecanismos para que as pessoas tenham vontade de estudar. O número de analfabetos é muito alto, no Nordeste chega a 50%.

Não é mais possível que apenas a sala de aula seja a tábua de salvação. Polos de cultura podem despertar a atenção.

Morador da favela do Caranguejo, vizinha à Ilha de Deus, Romero Evaristo da Silva Lima, de 35 anos, nasceu no município de Bom Jardim, a 110 quilômetros de Recife, aos oito anos já trabalhava na enxada, plantando milho, batata doce e inhame, e nunca teve a chance de ir à escola.

¿ A família era grande, ou trabalhava ou não comia. Me criei tangendo boi, plantando, não pensava em ir para a escola.

Agora, pretendo começar a estudar em 2011, pois há uma escola perto da minha casa ¿ diz Romero, que sabe escrever o nome porque um amigo ensinou: ¿ Para escrever os outros nomes (sobrenome completo), eu me atrapalho todo. Inteligente é minha filha, que só tem dez anos, já sabe ler, escrever e faz até carta ¿ espanta/p>