Título: Propaganda moldou imagem do nunca antes neste país
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 04/10/2010, O País, p. 15

Lula fez 74 comícios entre agosto e setembro, 20 a mais que na campanha pela sua reeleição, em 2006

O tom de voz era grave: ¿ Quero ganhar as eleições para cuidar do meu povo como uma mãe cuida do filho, é pra isso que serve o Estado.

Soou estranho. Não era uma mulher falando, mas um homem ¿ o presidente da República.

Lula discursava como se fosse a sua candidata em palanque do Instituto Federal de Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Salgueiro, no sertão pernambucano, a 500 quilômetros de Recife.

Naquela terça-feira, 17 de agosto, Dilma Rousseff encontrava-se a três mil quilômetros de distância, caçando votos em São Paulo. Não foi ao sertão porque a lei proíbe a participação de candidatos em atos de governo. Mas estava onipresente, pela voz do presidente.

E era como se o próprio Lula estivesse no páreo.

Eleição é combate pelo poder e, nessa, Lula resolveu testar os limites institucionais, amparado pela estrutura da Presidência, cujo custo chegou a R$ 22 milhões por dia. Escolheu a candidata, dirigiu a campanha e foi à rua ¿ ¿às seis da tarde viro cabo eleitoral¿, justificou-se aos eleitores. Fez 74 comícios entre agosto e setembro, dos quais 13 em palanques do PT e do PMDB ¿ 20 a mais que na campanha de reeleição, em 2006.

A opção por Dilma foi decisão solitária, maturada em conversas com ela e a mulher, Marisa, em jantares no Palácio da Alvorada. Lula deixou o PT à margem porque emergira das urnas, em 2006, com força muito superior à do seu partido.

Evidências do lulismo, ou ¿movimento¿ como ele costuma definir, já estavam aparentes. Na eleição de 1994, para cada dez votos que Lula recebeu, o PT arrebanhou seis para sua bancada na Câmara dos Deputados. Em 2002, quando se elegeu presidente, sua votação individual equivalia a pouco mais do dobro do seu partido na Câmara. Na reeleição, em 2006, obteve uma soma de votos três vezes acima do patamar alcançado pelo PT.

O sociólogo Gláucio Soares e a geógrafa Sonia Terron mapearam as votações em quatro eleições (de 1994 a 2006). Descobriram que até 2002 a base eleitoral de Lula e do PT se concentrava em 400 cidades. Nos dois últimos pleitos, esse território comum se reduziu a 115 municípios, dos quais apenas 13 no Centro e no Sul do país.

PT resistiu à opção por Dilma

Em 2006, a popularidade de Lula não se traduziu em aumento da bancada federal petista. E o PT saiu com dois milhões de votos a menos que conseguira nas eleições anteriores para o legislativo federal.

¿ Foi progressivo o distanciamento entre o líder e o partido ¿ explica Sonia Terron. ¿ É o oposto do que ocorreu com o PMDB e o PSDB, que expandiram suas bases e respectivas bancadas no Congresso quando chegaram à Presidência.

O PT se tornou caso pouco comum de partido que chegou ao poder e encolheu. Entrou no Congresso com 16 milhões de votos em 2002. Voltou com 14 milhões em 2006. Reeleito, Lula pediu a Dilma que ouvisse o publicitário João Santana. O pretexto era um conjunto de planos orçado em R$ 530 bilhões rotulado como ¿Programa de Aceleração do Crescimento¿.

As conversas entre o presidente e a chefe da Casa Civil sobre sucessão avançavam.

Em fevereiro de 2007, o presidente confirmou ao ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, a intenção de fazer candidata a chefe da Casa Civil.

Bastos cumpria o ritual de despedida do governo quando encontrou Dilma e avisou: ¿ Prepare-se, vai ser você.

A virtual candidata desconversou.

Sabia das resistências no PT. Novata, com seis anos de filiação, não participava das decisões.

Em sondagens sobre popularidade dos ministros se destacava pelo quase absoluto anonimato (registrou-se 97% de desconhecimento sobre quem ela era e qual sua função no governo).

Lula destacou um então incrédulo assessor, Gilberto Carvalho, para convencer os líderes petistas. Àquela altura, a percepção do governo, segundo o Instituto Datafolha, era razoável: 48% ótimo ou bom, 27% regular e 14% ruim ou péssimo.

A resistência a Dilma no PT se manteve. Até foi reforçada por outra pesquisa do Datafolha, no fim de novembro de 2007. Nela, José Serra (PSDB), então governador de São Paulo, aparecia como o mais forte candidato à sucessão de Lula, com 38%. Dilma ficou com 2%.

O fosso recém-aberto nas urnas entre o partido e seu líderfundador levara a burocracia petista a uma crise de identidade, com reflexos no projeto de sucessão presidencial. Paradoxalmente, a crise entre Lula e o PT só arrefeceu dois anos após a escolha de Dilma, em meados de 2009, quando ela se mostrou viável, com 15% da preferência. Casualmente, foi no período em que Dilma começou a tratar um câncer. Por ironia, agora a eleição dela se tornou ¿mais importante do que a eleição do Lula¿ ¿ na interpretação de petistas como o ex-deputado cassado José Dirceu ¿, ¿porque é a eleição do projeto político¿ do partido.

A oposição atravessou essa etapa entretida com a disputa no PSDB entre Serra, cujo favoritismo oscilava entre 38% e 41%, e Aécio Neves, com 14% e em alguns cenários até cinco pontos abaixo de Dilma.

¿Permitimos a mistificação¿

A avaliação do governo que já era favorável (70% consideravam ótimo ou bom) continuou em ascensão, arrastando para cima o poder de influência eleitoral do presidente. A máquina de propaganda oficial moldou a imagem da refundação do país, a partir de Lula, que assumiu o papel de ¿pai¿ dos pobres, numa evocação caricata do varguismo dos anos 50. ¿Permitimos a mistificação¿, constatou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

¿ Eles (a oposição) duvidavam que fosse conseguir fazer a transferência de voto ¿ ironizou Lula em comícios na semana passada. ¿ Erraram, porque quem estava e está popular não é o presidente, é o governo.

Para o presidente, tudo se deve à política econômica, um autêntico ¿pacto social¿: ¿ Podem perguntar a qualquer empresário se houve algum momento na história deste país em que ele ganhou dinheiro como em meu governo. Perguntem a qualquer sindicalista se ele conseguiu fazer, por oito anos consecutivos, acordos com aumento real de salário.

Na essência, é a política econômica herdada do período FH ¿ condimentada com o benefício do ciclo excepcional de valorização das exportações de produtos primários. Dentro do governo essa política sempre foi criticada por Dilma e líderes do PT, que a consideram excessivamente conservadora. Recentemente, passou ao alvo da oposição, que vê riscos na ¿farra¿ de consumo, juros estratosféricos, gastos estatais descontrolados e desequilíbrio no balanço de pagamentos, com as importações explodindo e substituindo a produção nacional. Para Lula, as críticas não têm fundamento: ¿ (O resultado) está chegando direto no bolso e na casa das pessoas.

Lula continua no palanque.

E, aparentemente, dele não pretende sair: a partir de 2 de janeiro de 2011 estará em outra campanha, como provável candidato à sucessão em 2014.

Mas, ele sabe: o risco de solidão é permanente para quem deixa o poder ¿ ¿quando o sujeito é ex, nem vento bate nas costas¿, ironiza. A única certeza de Luiz Inácio Lula da Silva, hoje, é a de que não faltam coelhos para assar em São Bernardo do Campo.