Título: Ele nunca deixou de dizer o que pensa
Autor: Godoy, Fernanda
Fonte: O Globo, 08/10/2010, O Mundo, p. 39

Escritora Nélida Piñon destaca independência do autor, seu velho amigo

Nélida Piñon fala com entusiasmo do Nobel recebido por Mario Vargas Llosa, a quem conheceu na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, em 1970. Desde então, uma grande amizade une os escritores ¿ Llosa dedica ¿A guerra do fim do mundo¿ a Nélida ¿ que volta e meia se encontram em eventos literários ou em ocasiões como a festa de 80 anos da poderosa agente literária Carmen Balcells (que representa os dois) em agosto, na Espanha. Embora já esperasse a premiação do amigo ¿há anos¿, Nélida conta ter recebido a notícia ¿em estado de choque e em estado de graça¿.

¿ Ele é um grande escritor, no qual se destaca, além do texto, o pensamento independente e a vocação para todos os gêneros. Sempre achei que era das mais agudas e autônomas consciências das Américas e nunca deixou de dizer o que pensa, mesmo que isso pudesse afetar uma possível premiação do Nobel ¿ observa a carioca Nélida, nascida de família originária da Galícia.

Vargas Llosa homenageia a amiga no documentário ¿Mapa dos afetos¿, sobre a obra de Nélida, dirigido por Júlio Lellis e recém-exibido no Festival do Rio.

¿ Ele deu um testemunho lindo. Por isso essa é uma vitória que me emociona ¿ diz ela.

A escritora já fez diversas conferências sobre Vargas Llosa e escreveu outros tantos textos sobre ele. Tantos que ela não se lembra exatamente, por exemplo, quando escreveu o texto cujos trechos seguem abaixo.

¿(...) Em ninguém conheci paixão tão irrepreensível pela literatura. Como se acreditasse que a vida não se desprendia da invenção literária, ainda que matéria complementar, sendo a mentira o instrumento com o qual se acerca da complexa natureza humana. E sua imaginação (...) tornava-se enredo também, pretexto para tornar-se uma narrativa de porte confessional. Assim, ele tecia, perante o meu assombro, cenários ora imaginativos, ora coerentes com a razão que amparava seus ideais da época. (...) Já no início da amizade, de um afeto que segue intacto (...), falávamos do impulso da escrita que nascia da adesão aos heróis que ambos nutríramos na adolescência e cujo surgimento o mundo novelesco ensejava. (...)

Jamais surpreendi em Mario traços de cinismo, de conciliações espúrias, de mazelas que acompanham às vezes a glória como um vírus letal. Enamorado da urdidura novelesca, ele não renuncia aos seus postulados latino-americanos, não negligencia os deveres da amizade que ainda hoje nos une através de tantas provas comoventes e inesquecíveis¿.