Título: A hora do Nobel
Autor: Godoy, Fernanda
Fonte: O Globo, 08/10/2010, O Mundo, p. 39

Escritor peruano Mario Vargas Llosa diz que prêmio é também da América Latina

MARIO VARGAS LLOSA com o ex-presidente do Peru Alejandro Toledo em Nova York. Na foto menor, editora alemã do escritor com seus livros na Feira de Frankfurt

Um Mario Vargas Llosa exultante com o reconhecimento de seu talento na forma do Prêmio Nobel de Literatura atravessou o primeiro dia de sua nova vida reafirmando o vigor de suas ideias liberais, a crença na maturidade da literatura da América Latina e no futuro do continente, ¿onde algumas coisas vão mal, mas outras vão melhor¿. Para a Academia Sueca, Vargas Llosa, de 74 anos, autor de ¿A cidade e os cachorros¿ (1962), ¿Conversa na Catedral¿ (1969) e ¿Pantaleão e as visitadoras¿ (1973) mereceu o prêmio anunciado ontem por sua ¿cartografia das estruturas do poder e por suas incisivas imagens da resistência, da revolta e da derrota do indivíduo¿.

¿ A Academia disse isso? Concordo inteiramente com a Academia! ¿ disse, arrancando risos da plateia de mais de cem jornalistas que se acotovelavam no auditório do Instituto Cervantes de Nova York, escolhido por ele para uma entrevista predominantemente em espanhol. ¿ Creio que é um prêmio literário, e espero que me tenham dado o prêmio por minha obra literária, mais do que por minhas opiniões políticas. Agora, se minhas opiniões políticas em defesa da democracia e da liberdade, contra as ditaduras, tiverem sido levadas em conta, em boa hora, me alegra muito.

Elogios a Guimarães Rosa e a `Os Sertões¿

Vargas Llosa estava relendo ¿O reino deste mundo¿, do cubano Alejo Carpentier, quando o telefone tocou em sua residência temporária de Nova York. Eram 5h45m, ainda noite fechada no outono nova-iorquino, e o escritor preparava uma aula para a Universidade Princeton, quando a surpresa por receber finalmente o Prêmio Nobel ansiado há muitos anos invadiu sua vida. Primeiro, sentiu angústia:

¿ As notícias que chegam ao amanhecer costumam ser más.

Depois, quando sua mulher, Patricia, lhe passou o telefone e ele distinguiu as palavras ¿Academia Sueca¿ na voz do interlocutor, o secretário da academia, Peter Englund, pensou que se tratasse de um trote.

¿ Eu achava que não era mais candidato ao Nobel. Me lembro de ter sido mencionado entre os candidatos há 20 anos. Acreditava que não era mais candidato, se é que havia sido algum dia, que tinha sido afastado. Então, a surpresa foi total ¿ disse Vargas Llosa, lembrando de um trote passado há anos ao escritor italiano Alberto Moravia.

Vargas Llosa receberá o prêmio de 10 milhões de coroas suecas (cerca de US$1,5 milhão) no dia 10 de dezembro, época em que estará lançando seu novo livro, ¿O sonho do celta¿. Assegurou que continuará escrevendo ¿até o último dia¿ de sua vida.

¿ Não acho que o Prêmio Nobel mudará minha forma de escrever, meus temas, meu estilo. O que o Nobel vai mudar, espero que transitoriamente, é minha vida cotidiana. Minha casa virou uma loucura. Tentarei sobreviver ¿ disse o escritor.

Qualquer sombra de ressentimento com a resistência a suas ideias políticas, que o teria feito esperar tantos anos pelo prêmio, passou longe de Vargas Llosa ontem. Vestido com o apuro de um dândi, e expressando igual elegância com as palavras, ele se negou a responder a uma pergunta sobre sua antiga desavença com Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de 1982, e pediu apenas à imprensa internacional que registrasse seu agradecimento pela declaração carinhosa feita ontem pelo colombiano. Vargas Llosa disse que o prêmio se dirige também à literatura latino-americana.

¿ Quando eu era jovem, a ideia de América Latina era muito estereotipada, parecia uma terra onde só havia ditadores, revolucionários, catástrofes. Agora todos sabem que a América Latina também produz músicos, pintores, pensadores e romancistas ¿ disse.

Sobre sua própria visão da América Latina, o escritor, candidato derrotado à Presidência do Peru em 1990, se declarou otimista. Ele agradeceu à presença na plateia do ex-presidente peruano Alejandro Toledo, que o defendeu quando o então presidente Fujimori quis cassar sua cidadania e à Espanha, pelo apoio ao longo da carreira e porque, ao lhe dar a cidadania em 1993, o salvou de se ¿converter em um pária¿.

¿ Na América Latina, apesar de haver muitas coisas que andam mal, há muitas coisas que andam melhor. Hoje temos muito menos ditaduras que no passado, temos governos de direita e de esquerda que são democráticos, é uma grande novidade ¿ disse Vargas Llosa, que citou como governos democráticos de esquerda e que promovem políticas econômicas liberais os do Brasil, do Uruguai e do Chile na época da Concertação.

Para Vargas Llosa, a parte que vai mal é a manutenção do regime ditatorial de Cuba e do governo do presidente venezuelano, Hugo Chávez.

Falando de literatura brasileira, Vargas Llosa elogiou ¿Os Sertões¿, de Euclides da Cunha, no qual se inspirou para escrever ¿A guerra do fim do mundo¿, Guimarães Rosa e a amiga escritora Nélida Piñon. Sobre o futuro da literatura com as novas tecnologias, fez mais um apelo que uma profecia:

¿ Espero que a literatura continue sendo algo profundamente ligado aos problemas mais essenciais do ser humano. Está nas nossas mãos impedir a destruição do que foi construído na longa estrada da civilização.