Título: Depois, dá um vazio danado
Autor: Benevides, Carolina; Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 10/10/2010, O País, p. 3

Sem recursos, mulheres recorrem a remédios e clínicas clandestinas

TERESINA e RECIFE. Há três anos, a estudante Roseli Maria da Conceição, de 22 anos, morreu uma semana depois de ter sido internada num hospital público de Teresina, em consequência de complicações por consumo de antiabortivo. Até hoje a família não sabe qual foi o medicamento usado. A aposentada Rosa Maria da Conceição, de 72 anos, bisavó, mas, na prática avó por ter criado desde pequena a mãe de Roseli, Rosângela da Conceição, chora ao lembrar da rapidez da morte e das circunstâncias.

Roseli morreu grávida de três meses, algo que a família desconhecia, como também era ignorante em relação ao fato de a estudante ser HIV positiva.

¿ Só depois de sua morte é que fomos saber que ela estava grávida, tomou remédio e estava com HIV. A gente não sabia de nada, não podia adivinhar ¿ diz Rosa Maria, moradora da Vila Risoleta Neves, bairro pobre na Zona Norte de Teresina.

A informação de que Roseli tomara medicamento para provocar o aborto só chegou à família após o exame cadavérico no Instituto MédicoLegal. A bisavó lembra que a garota era estudiosa e tinha concluído o ensino médio. Ficou grávida pela primeira vez aos 17 anos e teve uma menina que morreu aos 5 anos.

Rosa Maria hoje acredita que a bisneta tentou estimular o aborto para não ter um filho com HIV. Ela conta que a jovem foi internada com fortes dores na barriga: ¿ Morreu com o bebê na barriga, era tão nova, sempre fininha e bonitinha.

Em Recife, a cozinheira X., de 44 anos, tem dez filhos de dois casamentos, que poderiam ter sido 12.

Dois ela abortou porque quis, numa clínica clandestina em Camarajibe, município vizinho de Recife. A mesma que indicava para as vizinhas que, como ela, enfrentaram uma gravidez indesejada ou inoportuna.

No caso de X., o motivo foi a falta de trabalho dela e do marido, que depois se rendeu ao alcoolismo.

¿ Fiz porque estava desempregada, e levei seis amigas para fazer. Tenho pouca lembrança do que aconteceu. Mas só tinha uma pessoa, que era o médico.

Ele deu injeção no meu braço e nas minhas nádegas. Depois, senti uma pontada dentro da barriga.

Quando ele terminou, eu estava com hemorragia. Mas o doutor disse que era assim mesmo e que no dia seguinte eu fosse a uma maternidade fazer uma curetagem ¿ contou ela.

Só no ano passado, a rede pública estadual realizou 10.903 curetagens pós-aborto em Pernambuco, grande parte proveniente de procedimentos clandestinos. Todas as amigas de X. que fizeram aborto precisaram de atendimento posterior.

¿ Esse assunto é muito delicado, muito íntimo. Depois que a mulher tira o menino, dá um vazio danado.

Mas faz porque precisa. O povo e as autoridades não entendem a necessidade da mulher.

Pensei que não podia botar ninguém no mundo para morrer de fome ¿ diz X.