Título: Mortes em silêncio
Autor: Benevides, Carolina; Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 10/10/2010, O País, p. 3

Tema de última hora de campanha, aborto mata uma brasileira a cada dois dias SÃO PAULO

Enquanto religião e política se misturam na campanha presidencial, uma mulher aborta a cada 33 segundos e a prática insegura mata uma brasileira a cada dois dias, sendo que um abortamento é feito para cada 3,5 nascidos vivos. Tema polêmico, desde que o aborto passou a ser assunto central da campanha, sendo responsável, segundo pesquisas, por ajudar a levar a eleição para o segundo turno, os candidatos Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB) têm se esforçado para manter a discussão vinculada ao viés moral e religioso.

¿ O debate não devia tratar de quem é contra e quem é a favor, mas de como é possível resolver um problema de saúde pública. Mulheres de todas as classes sociais, idades, escolaridades e religiões abortam. Muitas acabam no serviço público de saúde, onde são negligenciadas, julgadas e condenadas, o que contribui para que o número de mortes seja alto ¿ diz Paula Viana, do grupo Curumim, que pesquisou a questão em cinco estados: Rio de Janeiro, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Bahia e Pernambuco.

De acordo com dados do Sistema Único de Saúde (SUS), 183,6 mil atendimentos de mulheres que abortaram, sofreram complicações e precisaram passar por uma curetagem foram feitos em 2009. Segundo as estimativas dos médicos, para cada caso que acaba no hospital, outros quatro abortos foram feitos no mais absoluto silêncio. Só em 2009, 942.713 abortamentos induzidos foram realizados no país. A conta, feita pelo pesquisador Mario Monteiro, da Uerj, a partir de dados do SUS, não leva em conta os abortos espontâneos e as mulheres que abortaram em clínicas particulares ou em casa e não precisaram recorrer ao sistema público.

Mulher pode ser condenada à prisão

Feito às escuras e das mais variadas formas ¿ desde o uso de medicamentos, chás e até com objetos perfurantes ¿, o aborto é, de acordo com o Ministério da Saúde, responsável por 15% das mortes maternas, sendo a quarta causa de mortalidade de mães no Brasil. Em média, 200 brasileiras morrem por ano. Os únicos tipos permitidos são o ¿humanitário¿ (quando a mulher sofre violência sexual) e o ¿terapêutico¿ (para mulheres em risco de vida). O aborto em caso de anencefalia (o bebê, se nascer, não terá cérebro) ainda é polêmico no Supremo Tribunal Federal (STF). Para os outros casos, a mulher que abortar pode ser condenada a até três anos de prisão.

¿ A criminalização faz com que seja difícil termos informações sobre abortos, mas não impede que as mulheres interrompam a gravidez. Em Salvador, no começo e no final dos anos 90, o aborto era a primeira causa de morte materna. O mesmo aconteceu em Recife, no começo da década de 90, e em Porto Alegre no ano 2000. A partir dos dados disponíveis, não é exagero reiterar que temos um problema de saúde pública ¿ diz a médica Greice Menezes, do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ.

Apesar dos números alarmantes, dados recentes do Ministério da Saúde mostram que o número de abortos vem caindo desde os anos 90. Em 2008, por exemplo, foram feitos 20 mil curetagens a mais que em 2009.

Por sua vez, em 2004 e 2005, os números ultrapassaram as 240 mil internações por ano. Em 2009, foram gastos R$ 1,7 milhão em curetagens.

Pesquisa realizada pela USP mostrou que a curetagem foi a cirurgia mais realizada pelo SUS entre 1995 e 2007.

Ao todo, 3,1 milhões foram feitas.

¿ O número de abortos está caindo muito lentamente, mas está. Nos anos 90, eram feitas 350 mil curetagens por ano. Até 2005, esse número ficou ao redor de 250 mil. Agora, fechouse o ano com cerca de 180 mil.

Isso significa uma queda no número de abortos e mais utilização de métodos contraceptivos, como a pílula do dia seguinte. Mas também o uso de meios de interrupção de gravidez que trazem menor risco, como as medicações ¿ aponta Cristião Fernando Rosas, secretário da Comissão Nacional de Violência Sexual e Interrupção da Gravidez da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).

Uma das autoras da pesquisa ¿Aborto e Saúde Pública ¿ 20 anos de aborto no Brasil¿, sobre mulheres que procuraram o sistema público entre 1988 e 2008, Marilena Côrrea conta que, em duas décadas, a grande mudança foi a maneira como o aborto é realizado: ¿ Os objetos perfurantes foram substituídos por medicamentos.

Com os objetos, o risco de hemorragia era maior.

Consultor permanente da Organização Mundial de Saúde (OMS), o pesquisador Anibal Faúndes, da Unicamp, aponta ¿o melhor acesso a métodos anticoncepcionais¿ como uma das causas para o número de abortos ter diminuído, mas destaca que o número de mulheres em situação de aborto continua crescendo: ¿ É evidente que há grandes grupos que ainda não têm acesso a anticoncepcionais eficazes e que principalmente as adolescentes continuam engravidando por falta de conhecimento, por sofrer formas mais ou menos evidentes de violência sexual, e por carecer de serviços de saúde.

Para Faúndes, a criminalização das mulheres não é a postura adequada de quem se diz contra o aborto: ¿ Ser contra não é colocar na cadeia mulheres pobres que abortam, mas ter programas de educação em sexualidade responsável e assegurar o acesso universal à informação e serviços de contracepção.