Título: Exagero na rua
Autor:
Fonte: O Globo, 13/10/2010, Opinião, p. 6
Toda síntese é leviana. Corro este risco. Mas quero colaborar para a reflexão sobre a liberdade de assistir aos shows musicais, uma tradição dos teatros e bares do Rio onde nasceram grandes nomes da nossa música, que tem na Bossa Nova um marco no cenário mundial.
Esses espaços estão desaparecendo e agora podem levar mais uma pá de cal com a Lei Seca. Beco das Garrafas, Teatro Opinião, 706, Mistura Fina, ZiCartola, People, Chico¿s Bar, Canecão, Scala, Modern Sound, entre outros, revelaram e consagram os maiores nomes da música do planeta. Muitas dessas casas cerraram suas portas e as novas que estão por abrir, também fecharão. Já nascem com dias contados. Surgem da inspiração e transpiração de sonhadores, que se imaginam como Ângela Leal no Rival, e depois veem os sonhos encerrados por impostos e falta de incentivo. Com a onda da violência, anteciparam os horários dos espetáculos, tentando também pegar o pessoal saindo do trabalho. Como Albino Pinheiro fez no saudoso Projeto Seis e Meia.
As blitzes colocadas no percurso do retorno do Centro, por volta das 22h, apanham em sua maioria pessoas da meia idade que estão voltando para suas residências após um dia de trabalho. Se as estatísticas mostram que os acidentes acontecem nas madrugadas, o problema é localizado. Não precisava desse aparato todo para aumentar o engarrafamento e o risco de assalto a pessoas que já sustentam e pagam altas taxas para manter a cidade funcionando, e que agora não podem nem ¿fazer uma hora¿ até o congestionamento diminuir, bebendo dois ou três inocentes chopinhos.
Parece que o que está restando para o outrora alegre e bem-humorado carioca é viver no seu quadrado! Precisamos de uma gestão de forma inteligente e pontual para detectar o problema e punir os faltosos. Caso contrário, podemos acabar com a semente do rico trigo cultural e disseminar o joio em nome de um quadro trágico que existia e podia ser controlado nos seus horários e pontos marcados. São mortes anunciadas e seus causadores, fáceis de serem apanhados e punidos com a legislação já existente.
Agora, não! É punido até mesmo quem está com uma quantidade ínfima de álcool no sangue. Uma motorista chegou a ser flagrada depois de ter ingerido dois bombons com licor. A administração pública deve agir com razoabilidade. Quem bebe duas taças de vinho para acalentar os sonhos e molhar a palavra, tão seca e ácida, para fugir das banalidades e futilidades nas TVs, no recesso do lar, é obrigado a deixar de viajar com os maravilhosos compositores e músicos do Brasil. Somos punidos por deixarmos o coração assumir.
Pesquisas mostram que a Lei Seca no Brasil é uma das mais rígidas do mundo. O limite é o equivalente a um copo de chope. Além de multa de R$955, a lei prevê a perda do direito de dirigir e a retenção do veículo. A partir de seis decigramas por litro, a punição é acrescida de prisão. Um exagero! Quem está sensibilizado com menos ou mais que seis decigramas não chega a perturbar a segurança viária, não está cometendo crime. Não pode ser preso em flagrante. É um crime contra o cidadão de bem.
A fiscalização intensa da polícia comprovou ser fundamental na prevenção de acidentes. É um equívoco imaginar que leis severas e injustas são eficientes. A fiscalização é que é decisiva, ao lado da educação. Vamos defender vidas com responsabilidade e liberdade!
JOSÉ CARLOS TEDESCO é jornalista.