Título: Há competição para provar quem tem mais fé
Autor: Benevides, Carolina; Galdo, Rafael
Fonte: O Globo, 16/10/2010, O País, p. 16

Pesquisadora da área de religião e política aponta retrocessos no discurso que tomou conta da campanha presidencial

Antropóloga, pesquisadora da área de religião, política e juventude há 30 anos e professora da UFRJ, a paulista Regina Novaes, de 60 anos, afirma que o discurso conservador da campanha presidencial é um retrocesso: "O vale-tudo eleitoral atual está provocando indevidas generalizações. Parece que estamos voltando atrás no tempo".

A campanha presidencial está mais conservadora?

REGINA NOVAES:Nos últimos dias nem parece que estamos vivendo no mesmo país da Constituinte de 88, na qual se equacionou direitos de cidadania e valorização da diversidade brasileira. Já tínhamos assistido a alianças políticas inesperadas contra a descriminalização do aborto no Congresso, mas nunca em uma campanha presidencial. O vale-tudo eleitoral atual está provocando indevidas generalizações. Mas com uma diferença: o suposto conservadorismo evangélico é valorizado (e ecumenicamente se soma a setores da Igreja Católica). Parece que estamos voltando atrás no tempo.

Como a senhora vê a postura dos candidatos quando o assunto é religião?

REGINA:O problema não está nos candidatos irem aos templos, mas no discurso utilizado por eles, que revela uma competição para provar quem tem mais fé, uma luta do bem contra o mal. Tem prevalecido uma linguagem pseudoreligiosa que subestima os fiéis enquanto cidadãos. Pesquisas já mostraram que bispos, padres e pastores não têm tanto poder sobre os votos dos eleitores. No catolicismo, essa influência é difícil de ser avaliada. Já entre os evangélicos, que são os que mais se reúnem, estima-se que apenas a metade dos fiéis vota de acordo com orientação recebida nas igrejas.

"A eleição tem a pior mistura de política e religião"

É possível misturar religião e política ao se discutir temas como aborto, casamento gay e união civil dos homossexuais?

REGINA NOVAES: Há várias maneiras de misturar religião e política. Nesta eleição, está se fazendo a pior mistura. Interessante notar que, em eleições passadas, temia-se que candidatos evangélicos, vistos como sectários e fundamentalistas, se apropriassem do Estado laico e republicano. Mas hoje vemos uma elite política e católica do Sudeste que busca setores evangélicos mais conservadores para colocar em questão a fé pessoal na disputa eleitoral. O que deveria interessar não é a prática religiosa de quem se candidata, mas como cada um dos candidatos pretende assegurar a liberdade religiosa.

As campanhas têm evitado discutir a criminalização da homofobia.

REGINA: Isso é uma lástima. Em vez de avançar este debate, pouco se faz para esclarecer as diferenças entre união civil entre pessoas do mesmo sexo e casamento gay. Ao Estado cabe o civil e os mecanismos para evitar a discriminação por orientação sexual. Às igrejas cabe decidir quem casar. Esta é outra mistura indevida que nos coloca muito aquém da nossa experiência democrática pós-Constituinte.