Título: Brasil paga o preço de ser antiamericano
Autor: Scofield Jr., Gilberto
Fonte: O Globo, 16/10/2010, Economia, p. 39

Para ex-presidente do BC, governo deveria estar ao lado dos EUA e fazer pressão sobre China por câmbio

SÃO PAULO. O economista Gustavo Franco não gosta da expressão guerra cambial para descrever a queda global do dólar e seu impacto na economia mundial. Com sua experiência como secretário-adjunto de Política Econômica da Fazenda, diretor e presidente do Banco Central na época em que o país vivia a euforia do câmbio semifixo - abandonado em 1999 -, Franco considera a crise cambial resultado do desequilíbrio causado pela política monetária expansionista dos EUA e pela competitividade artificial da economia chinesa. Para ele, o Brasil está pagando o preço de sua ingênua política externa anti-imperialista - e antiamericana - e do alinhamento com Pequim, armadilha da qual será difícil sair.

Afinal, vivemos um guerra cambial?

GUSTAVO FRANCO: Não vejo propriamente uma guerra, e acho que essa linguagem não ajuda no encaminhamento de soluções para as duas fontes de toda essa tensão: a política monetária dos EUA (que responde à crise bancária deles) e a taxa de câmbio chinesa, que reflete as singularidades da China. Essa combinação gera um ambiente meio envenenado, mas o enfraquecimento do dólar é mais uma solução que um problema. Há anos que se fala em desequilíbrios globais e que os EUA não podem ter déficits continuados na magnitude dos últimos anos. O dólar fraco ajuda a arrumar o déficit americano e reduzir o desequilíbrio global. Curioso é que o mundo emergente parece não querer a eliminação do desequilíbrio, pois a redução dos déficits americanos só pode ocorrer com a redução dos superávits de todo o resto. Parece-me que estamos vivendo muito mais um ajuste a um problema crônico do que um problema novo.

EUA e Europa insistem na crítica ao governo chinês, que mantém o yuan artificialmente desvalorizado. Até que ponto o desequilíbrio vem da China?

FRANCO: A China tem boa parcela de culpa, por ser uma espécie de paraíso hipercapitalista, onde os salários são aviltados, não há direitos trabalhistas, previdência e nada que eleve o custo do trabalho. É uma situação assimétrica que se reflete na hipercompetitividade chinesa, que não tem a ver com produtividade e produz a taxa de câmbio hiperdesvalorizada deles. Câmbio é salário de cabeça para baixo. Essa é uma má notícia, pois significa que não há propriamente artificialismo no câmbio, portanto não há o que o governo chinês possa fazer para corrigir o problema sem mexer profundamente na sua economia.

Alguns emergentes criticam os países ricos, cuja política expansionista e de juros baixos torna os juros dos emergentes atraentes para o capital especulativo. Qual a verdadeira dimensão do problema?

FRANCO: O Brasil, como muitos emergentes, quer manter superávits e reservas crescentes. Ora, mas só é possível que todos façam isso ao mesmo tempo se a chamada "economia central" se dispuser a manter déficits crônicos e gigantes, o que traz um risco à economia global. Por razões domésticas, esta "economia central", os EUA, está fazendo políticas que desvalorizam sua moeda e reduzem seus déficits. Não há muito o que os emergentes possam fazer. Este é um mundo interdependente. É preciso não esquecer que acumular reservas é o mesmo que acumular créditos contra os EUA.

É justo que emergentes como Brasil e Tailândia usem o aumento de impostos e sobretaxas para segurar a valorização de suas moedas? Esses instrumentos são eficazes?

FRANCO: Esse tipo de medida tem seu papel, porém bem mais reduzido do que pensa o governo. E acho que o IOF envolve riscos sérios, pois afeta entradas de capital de boa qualidade. E sua efetividade já se esgotou. O governo deveria trabalhar na remoção de proibições e entraves às saídas de capital em vez de dificultar entradas. Por exemplo, ao facilitar a possibilidade de cidadãos brasileiros adquirirem ativos no exterior (ações e imóveis) e incentivar empresas brasileiras a se estabelecerem e até comprarem concorrentes lá fora, o governo estaria sendo muito mais efetivo e aplicando um remédio de médio e longo prazos.

Qual o espaço nesta crise para uma ação coordenada, liderada pelo FMI ou o G-20?

FRANCO: Ambos os foros deveriam lidar com assimetrias e desequilíbrios. Ambos deveriam pressionar os chineses para remover artificialismos na sua taxa de câmbio. Os americanos estão certos, e o governo brasileiro deveria estar alinhado com eles. Não está por causa da nossa filosofia de política externa, antiamericana por princípio, o que, na atual circunstância, está totalmente errado. A recuperação da economia americana é do interesse de todos.

O senhor pensa que o Brasil deveria abandonar o modelo de câmbio flexível?

FRANCO: Nosso regime é flexível apenas no sentido de que não há compromisso com nenhuma meta. Todo dia tem ao menos um leilão. Não há muito o que inventar em matéria de regime cambial ou intervenção. Esta ajuda, mas não faz milagre. Deveríamos pensar em modificar os termos do problema, ou seja, criar condições para reduzir os juros e avançar com reformas. E sem descuidar da inflação, que não vai aguentar muito mais desaforo.

Como o país poderia lidar com a questão cambial em termos de reformas estruturais?

FRANCO: Qual a explicação para termos uma taxa de juros tão alta? É claro que tem a ver com finanças públicas precárias, e nas quais os progressos foram mínimos até recentemente, quando tivemos um gigantesco retrocesso. Estamos criando um problema que pode ser muito sério: a trajetória fiscal de meados de 2008 para cá é insustentável, estamos provocando a inflação.

Alguns economistas dizem que a falta de uma atuação mais agressiva do BC no câmbio ajuda a valorizar o real. O senhor concorda?

FRANCO: Não. O câmbio e o juro não são variáveis que o governo regula conforme acha bom, como abrir e fechar uma torneira. O governo pode alterar os fundamentos macro que limitam essas variáveis, isso sim. A melhor coisa seria reduzir gasto público, o contrário do que o governo vem fazendo.

Como o setor comércio exterior pode se defender do real forte? O governo deve ajudar?

FRANCO: Financiar competitivamente nossas exportações é importante. Mas do ponto de vista de diplomacia econômica, temos um problema. É difícil ser "livre cambista" quando o seu parceiro é a China, mas o governo reconheceu o país como "economia de mercado".

Qual o risco de uma guerra comercial global?

FRANCO: A hipercompetitividade chinesa tem a ver com sua falta de democracia. A pressão mundial para a China consertar o câmbio pode se tornar uma onda política pró-democracia, o que é bom, mas pode causar tensão com o governo chinês.

Franco diz que socorrer a economia levou a um descontrole fiscal

SÃO PAULO. Crítico da falta de debate sobre os problemas econômicos brasileiros nas campanhas dos presidenciáveis na reta do segundo turno, Gustavo Franco acredita que o atual governo perdeu o controle fiscal.

Na sua opinião, os candidatos têm dado aos problemas econômicos do país a devida importância?

GUSTAVO FRANCO: Não, os candidatos não têm discutido nada sobre a economia, o que é preocupante, pois pouco se sabe sobre o que pensam de dilemas complexos na nossa economia e da economia global. O candidato Serra é do ramo, mas da candidata Dilma nem isso podemos dizer.

Nesse debate político, o quanto de ironia há no fato de o candidato tucano, José Serra, defender uma política econômica mais intervencionista para reduzir juros e a candidata petista, Dilma Rousseff, querer manter os fundamentos da política econômica herdada do governo FH, com metas de inflação e BC independente?

FRANCO: Ironia nenhuma. Serra sabe que o caminho para reduzir os juros é arrumar a casa do ponto de vista da política fiscal. Portanto, é capaz de retomar a capacidade de formulação que havia no governo anterior. O governo atual não mexeu na política econômica pois não tinha nenhuma idéia melhor para mudar o que herdou. E continua sem ter. Porém, a fila anda, os desafios se renovam, e é preciso mostrar desembaraço, criatividade e capacidade de formulação. O governo Lula trabalhou bem durante a crise, fez o seu "Proer" no BC e no BNDES, salvou empresas e bancos, evitou maiores repercussões da crise, mas perdeu o passo, logo a seguir, na questão fiscal.

O senhor acredita que o aumento nos gastos públicos - especialmente os gastos fixos, como reajustes de aposentados e funcionalismo público - nos últimos anos tem um viés desestabilizador?

FRANCO: É claro que sim, esses e outros aumentos de despesa são totalmente inconsistentes com o equilíbrio de longo prazo da economia. A crise acabou servindo como pretexto para liberar "maus espíritos" que estavam reprimidos há tempos e, com isso, as metas de superávit primário foram trituradas, seja pelo aumento de despesa, seja pela manipulação contábil. Para culminar o processo, em 2010, receitas semelhantes às de privatização (que são os pagamentos à Petrobras pela cessão onerosa do petróleo do pré-sal) vão entrar "em cima da linha", como se fossem receitas tributárias. Isso é um absurdo contábil, sem falar que o BNDES tomou recursos do Tesouro para financiar a Petrobras. Em outros tempos isso dava uma CPI...

Como o senhor vê a tentativa do PT de demonizar o "governo liberal de Fernando Henrique"?

FRANCO: Acho patético, mas é coisa de campanha. Não vejo o ex-ministro Palocci, nem outras pessoas desse naipe, no governo, dizendo essas coisas. Isso vem do pessoal do caminhão de som, que não diz coisa com coisa mesmo.

O senhor acha que o governo FH investiu o suficiente em programas de redistribuição de renda? Esses programas - parte dos esforços de governos no combate à pobreza - ganharam relevância na cartilha de organismos internacionais como FMI e Bird nos últimos anos. É tarefa da equipe econômica de um governo pensar nisso?

FRANCO: Claro que sim. O governo FH começou muitos dos programas que depois ficaram consagrados como realizações do governo Lula. A questão da paternidade aí é menos importante que o fato de os progressos terem sido cumulativos, o governo Lula ampliando e melhorando o que encontrou. O espaço fiscal que o governo Lula teve para programas sociais foi bem maior do que o que havia para o governo FHC, que teve sua agenda congestionada com a consolidação da estabilização, o ajuste fiscal, bancário e as crises externas.

Há quem diga que tanto Serra quanto Dilma possuem agendas econômicas, no fundo, muito semelhantes. O senhor concorda com isso? Por quê?

FRANCO: Não creio. Os candidatos têm pontos de vista convergentes sobre muitas coisas na economia, como efetivamente vimos nos últimos anos. Mas não vamos ter ilusões. Há indícios de que a candidata Dilma está mais próxima do que foi feito no último ano do governo Lula do que nos sete anos anteriores. Mas são apenas indícios, e preocupantes. (Gilberto Scofield Jr.)