Título: No Brasil, um Nobel perplexo com seu status
Autor: Freitas, Guilherme
Fonte: O Globo, 15/10/2010, O País, p. 18

Vargas Llosa diz que desde o prêmio sente-se "representando um papel", fala sobre literatura e faz elogios e críticas a Lula

PORTO ALEGRE. Uma semana depois de receber o Nobel de Literatura, o peruano Mario Vargas Llosa começa a dar sinais de estar experimentado aquilo que o português José Saramago, vencedor do prêmio em 1998, classificou como uma espécie de "maldição": o assédio constante por parte da imprensa e dos leitores, interessados em todos os movimentos e opiniões daquele que se torna subitamente o escritor mais famoso do mundo (até que o próximo Nobel seja anunciado). Numa breve passagem de três dias pelo Brasil, que culminou com uma conferência do projeto Fronteiras do Pensamento realizada ontem em Porto Alegre, Vargas Llosa foi chamado a se pronunciar sobre tudo - das eleições brasileiras ao resgate dos mineiros no Chile - e a todos atendeu com paciência, mas não sem alguma perplexidade com seu novo status.

- O Nobel desperta uma curiosidade em grande parte frívola. O ganhador do prêmio se vê acossado de tal modo que perde a privacidade e a capacidade de se fechar em si para raciocinar. Ele se torna uma figura pública, queira ou não. Isso é passageiro, mas a impressão que tenho desde que recebi o prêmio é de não ser eu mesmo, de estar representando um papel que não escolhi. Mas é preciso fazer uma cara boa e não se queixar, porque estou muito contente - disse o escritor, de 74 anos, em entrevista coletiva realizada antes da conferência de ontem, na qual falou sobre o lugar da literatura e da velha noção de "alta cultura" no mundo de hoje.

"Democracias imperfeitas, mas democracias"

A perplexidade, porém, não impede que Vargas Llosa transite com desenvoltura entre temas literários e políticos - algo comum para um escritor que foi candidato à presidência de seu país em 1990. Em pouco mais de uma hora de entrevista, defendeu com entusiasmo antigas bandeiras suas, como o liberalismo econômico e a legalização das drogas, mas, ao examinar o cenário eleitoral brasileiro, preferiu não falar diretamente sobre os candidatos ("Seria irresponsável da minha parte opinar de forma partidária sobre as eleições", justificou). Não se furtou, porem, a avaliar os oito anos de governo Lula, com elogios à estabilidade econômica e ressalvas à política externa:

- Lula fez um bom governo, no qual o Brasil cresceu muito e adquiriu um prestígio internacional admirável. Creio que ele deixou de lado ideias antiquadas de esquerda para aplicar fórmulas social-democratas, continuando algumas políticas de Fernando Henrique Cardoso. Mas essa postura não combina com suas amizades com Fidel Castro e Hugo Chávez. Como se pode ser um líder democrata e abraçar essas pessoas?

Um intelectual que flertou com movimentos de esquerda na juventude, mas se tornou com o tempo um dos porta-vozes do neoliberalismo na América Latina, Vargas Llosa diz ter observado um "progresso considerável" nos governos da região nas últimas décadas. Para o escritor, são cada vez mais raros cenários como o do Peru dos anos 1950, cujo regime ditatorial retratou naquele que considera seu melhor romance, "Conversa na Catedral" (1969):

- Quando eu era jovem, a América Latina estava tomada por ditaduras. Governos civis e democráticos eram exceções à regra. Hoje temos um pluralismo político, com a liberdade de expressão garantida na maior parte do continente. São democracias imperfeitas, mas democracias. Hoje temos uma esquerda democrática em países como Uruguai e Brasil, e uma direita democrática, como no Peru e na Colômbia - observou o escritor, que guardou as críticas para seus alvos habituais, como a presidente argentina Cristina Kirchner ("uma governante que toca no fundo da demagogia e do populismo") e seus desafetos históricos, Fidel e Chávez (a quem chama de "ditador" e "semiditador", respectivamente).

Assim como suas ideias políticas, diz Vargas Llosa, suas ideias sobre literatura também mudaram ao longo do tempo. Se na juventude acreditava cegamente no modelo de "literatura engajada" proposto pelo francês Jean-Paul Sarte ("Para um jovem de um país subdesenvolvido, era um alento imaginar que a literatura por um lado era uma arte, mas por outro uma forma de intervir na vida pública"), hoje afirma que a literatura "não pode ser convertida num instrumento de ação política":

- Creio que a literatura deixa marcas profundas na vida, mas de forma indireta, através das consciências e da sensibilidade, e de uma maneira imprevisível. Não se pode programá-la ou dizer "vou escrever assim para mudar a sociedade". Isso é uma ingenuidade. Mas ainda creio que a literatura estimula, sim, a atitude crítica frente ao mundo. Não é à toa que todos os regimes totalitários estabelecem formas de controle da literatura, porque veem nela um perigo.

Das lições absorvidas ao longo dos anos, porém, a mais importante é jamais voltar a se candidatar a um cargo político, diz Vargas Llosa, que aprendeu isso a duras penas depois de ser derrotado por Alberto Fujimori nas eleições presidenciais peruanas de 1990:

- A ideia de política alimentada por um escritor, ou por um intelectual que vê a política desde uma biblioteca, é equivocada. A política pode ser também isso, mas é intriga, manobra, uma atividade que, como tudo que toca o poder, tira o melhor e o pior da pessoa. Numa campanha eleitoral, tira sobretudo o pior. Não quero dizer que não se deva fazer política, mas é preciso saber o que é a política. Ela tem uma dimensão generosa e idealista, mas também uma dimensão terrível.