Título: A mais nova tragédia do Haiti
Autor: Scofield Jr, Gilberto
Fonte: O Globo, 23/10/2010, O Mundo, p. 36

Surto de cólera mata 150 pessoas, infecta 1.500 e ameaça campos com sobreviventes do terremoto de janeiro A mais nova tragédia do Haiti

Sem ter ainda se recuperado do terremoto que matou cerca de 300 mil pessoas em 12 de janeiro, o Haiti vive agora uma nova tragédia: o presidente René Préval informou ontem que o país enfrenta um surto de cólera, que nos últimos dias matou 150 pessoas e já infectou mais de 1.500. No início restrito ao Vale do Artibonite, uma região pouco atingida pelo tremor, a doença teve dois casos registrados ontem em Arcahaie, cidadezinha que faz parte da mesma região administrativa da capital, Porto Príncipe, e havia relatos de que a doença já chegara à capital, bem como à ilha de La Gonâve ¿ indicando que está se espalhando. As autoridades temem que a doença chegue aos campos de refugiados, onde centenas de milhares de desabrigados pelo terremoto ainda vivem em condições precárias de higiene.

Com as unidades médicas lotadas nas regiões norte e central do país, pacientes deitados sobre cobertores recebiam medicação intravenosa no estacionamento de um hospital ontem. Dentro, famílias inteiras tomavam soro para evitar a desidratação.

O ministro da Saúde informou que a cepa da doença é do tipo 1, o mais perigoso. Pacientes e os corpos dos mortos não estão sendo devidamentes isolados, advertiu a ONU. Teme-se que a água do Rio Artibonite, que abastece o centro do Haiti, esteja contaminada.

¿ Posso confirmar que é cólera ¿ afirmou o presidente Préval.

Brasil mobiliza equipes de ajuda

Há cem anos o Haiti, o país mais pobre do continente, não via um surto de cólera. Os doentes têm diarreia e podem morrer por uma rápida desidratação, em alguns casos em horas. A situação mais grave ocorre em Saint Marc (100 km ao norte de Porto Príncipe), onde houve pelo menos 26 óbitos e mais de 400 internações. Outro local crítico é Verette, perto de Saint Marc, onde houve 18 mortes. Mais três morreram em Mirebalais, no centro do país. Relatos citam ainda Douin e Marchand Dessalines.

O Brasil enviará, na próxima semana, antidiarreicos, sais para reidratação oral, antibióticos e materiais descartáveis.

A embaixada em Porto Príncipe está em contato com a Minustah (a missão de paz da ONU), e equipes médicas estão sendo mobilizadas.

Membros de Médicos sem Fronteiras (MSF) e da Cruz Vermelha seguiram para Saint Marc e Mirebalais.

¿ As equipes chegaram lá e encontraram uma situação caótica, já havia mais de mil pessoas doentes ¿ disse ao GLOBO, por telefone, Barbara Maccagno, responsável dos projetos de Médicos Sem Fronteira no Haiti. ¿ O problema maior é saber como o vibrião chegou ao país. Não sabemos ainda em que medida os movimentos da população afetaram outros locais.

David Darg, da organização Operation Blessing International, ficou impressionado com a situação no Hospital St. Nicholas, em Saint Marc, onde doentes são atendidos até no estacionamento.

¿O pátio tinha filas de pacientes recebendo soro intravenoso.

Tinha chovido e havia pessoas deitadas no chão em lençóis encharcados e sujos de fezes¿, contou na internet.

Os mais afetados pela doença são jovens e idosos. Alguns pacientes como Belismene Jean Baptiste, de 70 anos, contam que ficaram doentes após beber água de um riacho.

¿ Corri para o banheiro para vomitar quatro vezes durante a noite ¿ disse Jean Baptiste.

Para o Escritório para Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) da ONU no Haiti, não se pode falar ainda em epidemia, porque a maioria dos casos está concentrada na região de Baixa Artibonite e do Planalto Central.

Segundo a OCHA, há médicos e suprimentos necessários para uma gigantesca operação de combate à doença que está sendo focada, num primeiro momento, na reidratação.

¿ Temíamos essa situação desde o terremoto ¿ contou Robin Mahfoof, do grupo Alimentos para os Pobres.

Teme-se que a doença se espalhe justamente para Porto Príncipe, onde há centenas de campos de refugiados.

Com os tremores, 1,3 milhão ficaram desabrigados. Durante um bom tempo, as organizações não governamentais que trabalham na reconstrução vinham afirmando que o processo estava lento ¿ dos US$ 5,3 bilhões prometidos por um grupo de países, menos de 10% se materializaram. Menos de 3% dos escombros foram removidos.

¿ A reconstrução não avançou ou avançou pouco. Os moradores continuam em campos de refugiados sem higiene, falta luz dias seguidos, água encanada, e as autoridades parecem focar ainda no atendimento de emergência, com comida, água e roupas.

Este ambiente insalubre é perfeito para a proliferação de doenças ¿ disse ao GLOBO o tenente-coronel Maurício Cruz, chefe da comunicação social das operações militares da Minustah.

Quem participa dos debates na Comissão de Reconstrução do Haiti, presidida por Préval em assessoria com a Minustah, já percebeu que as decisões sobre grandes investimentos de reconstrução, que se arrastavam desde meados do ano, paralisaram de vez em função da proximidade das eleições de 28 de novembro. São grandes as indecisões sobre a lisura do pleito com 19 candidatos num país que ainda contabiliza como eleitores pessoas falecidas por conta do terremoto.

¿ O espaço para fraudes é enorme ¿ disse ao GLOBO uma fonte ligada ao governo.