Título: Lições espanholas incentivam a doar orgãos e salvar vidas
Autor: Guilayn, Priscila
Fonte: O Globo, 25/10/2010, O País, p. 12

País ibérico é líder mundial em transplantes com política de agilidade e conscientização

LÍDER MUNDIAL em transplantes de órgãos, a Espanha é onde acontecem 18% de todas as doações dentro da União Europeia

MATESANZ: ¿Na Espanha, de cada cem famílias, 84 dizem `sim¿ às doações¿

MADRI. Explicar, com muito jeito, o que é a morte cerebral para os parentes de uma pessoa que vai morrer é o primeiro, e fundamental, passo para conseguir salvar outra vida. Não se trata de pedir uma doação. Quando os médicos e enfermeiros sabem esclarecer todas as dúvidas de uma maneira certeira e delicada, a família da pessoa morta acaba tomando a iniciativa. A Espanha é o país que melhor conhece esse e todos os demais passos de um transplante de órgãos. É líder mundial. Salva cerca de quatro mil vidas ao ano, com uma taxa de 34,4 doadores por milhão de habitantes. Quase o dobro da média europeia, 18,3 por milhão de habitantes. Nos Estados Unidos, o índice é de 26,3 por milhão de habitantes.

¿ O que não se pode fazer é isso que vemos nos filmes americanos: pedir os órgãos no corredor do hospital, com cinco segundos para decidir. Não é assim. É preciso um ambiente tranquilo e é fundamental conversar muito com a família ¿ diz Rafael Matesanz, diretor da Organização Nacional de Transplantes (ONT), que nesta sexta-feira recebeu, em nome da entidade, o prêmio Príncipe de Astúrias (uma espécie de Nobel espanhol) da Cooperação.

Modelo para países da UE

Quase um em cada cinco doadores europeus é espanhol ou mora na Espanha. Ou seja, 18% das doações totais de órgãos dentro da União Europeia (UE) são feitas na Espanha. Essa experiência de sucesso serviu de exemplo para criar um modelo uniforme de transplantes, em um marco jurídico comum, dentro da União Europeia, que quer combater o tráfico de órgãos, reduzir as listas de espera e atingir a meta de salvar 20 mil vidas por ano. A nova diretriz europeia baseada no modelo espanhol foi aprovada em maio pela Câmara de Estrasburgo. Cada país-membro terá um prazo de dois anos para adequar essa norma à sua legislação.

¿ Existe um dado muito curioso: na Espanha, de cada cem famílias, 84 dizem ¿sim¿ às doações, e 16, ¿não¿. No Reino Unido, 60 dizem ¿sim¿, e 40, ¿não¿. No entanto, dos britânicos que moram na Espanha e se veem diante da possibilidade de uma doação, só 8% nos dizem ¿não¿. Deduzo que se sentem melhor tratados aqui ou que transmitimos mais confiança ¿ conta Matesanz.

Além da adequação legislativa, o novo modelo europeu, espelhado no espanhol, seguirá um plano de ação para reforçar a cooperação entre os vizinhos da UE, com três objetivos: aumentar a disponibilidade de órgãos, potencializar a acessibilidade e melhorar a qualidade e a segurança da intervenção. Os países europeus deverão garantir formação especializada aos profissionais envolvidos em todo o processo de doação e transplante.

¿ Da UTI, onde se produzem as doações, alguém precisa perceber um determinado falecido ou alguém com morte cerebral como possíveis doadores. Pode parecer óbvio, mas não é. Nosso modelo se baseia em muitos profissionais atentos, em cada UTI, para detectar, nessas situações que mencionei, possíveis doadores. Isso não existe em outros países. É o que marca a diferença ¿ explica Matesanz.

Ele costuma dizer que é um erro pensar que as doações são algo espontâneo e caem do céu. Pelo contrário, a complexidade é enorme, e a organização, extremamente rigorosa, é vital para que tudo acabe bem. Aí está a filosofia do modelo espanhol. Tudo deve ser tratado minuciosamente, seguindo um protocolo estrito, sem margem para improvisações.

Quando há um doador de cinco ou seis órgãos, a equipe que intervém neste processo não é inferior a cem pessoas. Se o doador e receptor não estão na mesma cidade, um avião (em geral, um táxi aéreo) leva a equipe médica para extrair o órgão e, depois, transplantá-lo. Tudo pago pelo Sistema Nacional de Saúde (SNS). Entre uma cirurgia e outra não podem se passar mais de três ou quatro horas, que é o tempo de vida, por exemplo, de um coração ou de um pulmão. Um fígado, que aguenta de oito a dez horas, e um rim, até 24 horas, podem viajar sem a equipe médica, em linha aérea regular.

¿ As palavras ¿transplante¿ e ¿ONT¿ abrem muitas portas. Mobilizamos a sociedade espanhola. Um aeroporto fechado à noite, por exemplo, é aberto; a polícia é acionada, as ambulâncias também, e, se necessário, a Aeronáutica. Conseguimos envolver entidades públicas e privadas. Todo mundo colabora e desde o princípio houve predisposição das pessoas ¿ conta Matesanz.

Com uma organização impecável, a ONT já conseguiu coordenar 32 transplantes em um só dia, em oito comunidades autônomas diferentes, procedentes de 13 doações multiorgânicas. Também já foi capaz de supervisar 70 transplantes em 66 horas consecutivas, ou seja, mais de um transplante por hora.

O trâmite espanhol para um transplante é similar para todos os tipos de órgãos. Primeiro, o médico detecta se a doença é passível de transplante. Segundo, o paciente é examinado por uma equipe, que avalia seu grau de urgência e envia os dados do doente para a ONT, colocando-o na lista de espera. Se sua vida depende de um transplante em dois ou três dias, o paciente tem prioridade total. Se não é um caso de urgência, entra na fila de espera ¿ cerca de 5.500 pessoas ¿, que obedece às normas de distribuição. A média de espera por um coração, por exemplo, é de dois meses.

Em 21 anos, 375 mil transplantes

A ONT, subordinada ao Ministério de Saúde, foi criada em 1980, mas só começou a funcionar nove anos mais tarde. Desde então já realizou 75 mil transplantes de órgãos sólidos e mais de 300 mil de células e tecidos. Os primeiros transplantes realizados na Espanha foram de córnea, em 1940; seguidos de transplantes de rim, em 1965; de pâncreas, em 1983; e de fígado, em 1984, mesmo ano em que se transplantou, com sucesso, em Barcelona, o primeiro coração.