Título: Relação de altos e baixos com o Brasil
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 28/10/2010, O Mundo, p. 35

Kirchner era grato por ajuda na economia, mas se ressentia com papel regional de Lula

BRASÍLIA. O temperamento explosivo que levou Néstor Kirchner a brigar com segmentos da sociedade argentina, como a imprensa, as Forças Armadas e a Igreja, também fez com que o expresidente argentino mantivesse com o Brasil uma relação de altos e baixos. Para alguns, uma relação marcada por certo ciúme.

Embora fosse grato pela ajuda do Brasil no processo de recuperação da economia de seu país e se destacasse como defensor da integração na região, Kirchner se ressentia da liderança do presidente Lula na América do Sul, e entre as nações em desenvolvimento como um todo.

Em 2003, o então presidente argentino abandonou no meio uma cúpula de chefes de Estado árabes e sul-americanos, em Brasília. Levantou-se da cadeira em que estava, em plena abertura do evento, e se foi. Néstor ¿ e, em seguida, Cristina Kirchner ¿ posicionou-se contra a candidatura do Brasil a uma vaga permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Argumentava que os brasileiros não poderiam representar sozinhos a América Latina. Teriam de se revezar com os argentinos.

Em 2005, o governo Kirchner também se recusou a apoiar o embaixador brasileiro Luiz Felipe de Seixas Corrêa como candidato à secretaria-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Preferiu ficar ao lado do uruguaio Carlos Pérez del Castillo.

A divisão entre os latinos fez com que o francês Pascal Lamy fosse eleito para o cargo.

No campo comercial, Kirchner provocou constrangimento ao, um dia antes de uma reunião da cúpula do Mercosul, adotar salvaguardas nas importações de eletrodomésticos do Brasil.

Contando com a boa vontade do governo e representantes do setor privado brasileiro, o então presidente fechou um acordo de restrição voluntária de exportações brasileiras a seu país.

Internamente, a avaliação é que, perto de Evo Morales, que nacionalizou as reservas de gás e petróleo, e do polêmico Hugo Chávez, Kirchner foi bem mais suave do que antecessores como Carlos Menem, e da própria Cristina, que tenta bloquear importações brasileiras, sem sucesso.

¿Olhando por esse lado¿, disse um integrante do governo brasileiro, ¿as relações entre Lula e Kirchner eram excelentes¿.

Especialista em Argentina, o professor da Universidade de Brasília, Carlos Eduardo Vidigal, acredita que Kirchner tenha sido grato à ajuda dada pelo Brasil para tirar seu país da crise. Citou a abertura de exceções à Tarifa Externa Comum (TEC), o aumento de importações do país vizinho e o discurso efusivo do presidente Lula e seus auxiliares em prol da renegociação da dívida argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

¿ Em termos de visão econômica, havia semelhança muito forte entre os governos Lula e Kirchner. Mas é claro que havia certo ressentimento dos argentinos quanto à predominância do Brasil na região ¿ disse.

Amorim destaca contribuição para Unasul e Mercosul O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, destacou o papel de Kirchner na recuperação da economia do país e lembrou as boas relações entre o líder argentino e Lula.

¿ Nos sentimos muito chocados.

Primeiro porque a Argentina é um grande parceiro, um país amigo.

Amorim mencionou a participação de Kirchner como mediador entre Venezuela e Colômbia, e enviou carta ao chanceler argentino, destacando o papel do ex-presidente no fortalecimento do Mercosul. Kirchner foi nomeado este ano o primeiro secretáriogeral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), que teve um papel fundamental na resolução do conflito entre o ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe, e Chávez, em agosto deste ano; e na crise no Equador, em setembro.