Título: Cristina, agora, no papel principal
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 28/10/2010, O Mundo, p. 35

O desaparecimento do líder governista gera múltiplas interrogações. É a primeira vez na História argentina que a ausência de alguém que não é o presidente gera uma situação semelhante.

Isso, antes de tudo, mostra que a Argentina estava vivendo uma situação anômala. O institucional estava subordinado ao político. A ausência de Kirchner deixa a sensação política de que falta o presidente e é como se se apresentasse a questão de como vai agir o vice-presidente.

Até o último momento, Kirchner se encarregou de deixar evidente que era ele quem exercia realmente o poder, e não sua mulher, a presidente Cristina. Ela nunca o rechaçou, nunca buscou gerar um espaço próprio de poder nem no campo simbólico.

Ela ocupa agora o centro da cena e tem a oportunidade de exercer o poder por si mesma, um ano antes das eleições e a 13 meses de terminar seu mandato. Tem a oportunidade de modificar, retificar, corrigir, mudar uma série de aspectos, estilos, orientações e políticas impostas pelo marido e que levaram a uma situação inédita ¿ que um governo com a economia crescendo a 9% tenha a aprovação de apenas uma pessoa em cada três. Ela agora pode tomar algumas decisões que se exigem, como distanciar-se de Hugo Moyano (líder sindicalista) e acabar com a influência dele.

Em princípio, o peronismo ¿ que nunca viu com simpatia o kirchnerismo e sua aliança com a esquerda, que primeiro se dividiu diante do conflito com o campo e depois o derrotou nas eleições do ano passado, e que nos últimos dias mostrou suas diferenças através de Daniel Scioli (governador da província de Buenos Aires) ¿ recupera o protagonismo.

Seria possível imaginar que as figuras mais ligadas a Néstor Kirchner poderão, agora, ter menos poder ou ser afastadas. Por exemplo, Cristina tem a oportunidade de substituir funcionários polêmicos, como o secretário do Comércio, Guillermo Moreno. Se insistir na linha traçada pelo marido, não será fácil governar.

Com Kirchner, desaparece a figura política mais importante da década, como foi Raúl Alfonsín nos anos 80, e Carlos Menem nos 90.

Deixa a esposa com um governo sólido no campo econômico, mas em confronto com o setor produtivo mais importante do país, o campo; em conflito também com o setor industrial; com má relação com a Corte Suprema; em conflito com o Congresso, com a Igreja Católica; num surto de guerra contra os principais meios de comunicação privados e em vias de romper relações com o governador da principal província.

O peronismo estava se afastando. Já ao comício de River, presidido pelo casal Kirchner e Moyano, haviam comparecido apenas cinco administradores peronistas da região, e cinco governadores haviam rechaçado a candidatura presidencial de Scioli.

A continuidade institucional não está em risco na Argentina, mas pode estar a governabilidade no final de mandato de Cristina, se ela não aproveitar o que pode ser sua oportunidade histórica: deixar de ser a presidente de uma facção para passar a ser de todos os argentinos.

ROSENDO FRAGA é diretor do Centro de Estudos União para a Nova Maioria e escreveu este artigo para o ¿La Nación¿