Título: Pensar tudo de novo
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Fonte: O Globo, 28/10/2010, Opinião, p. 7

Néstor Kirchner foi o homem que, nos últimos sete anos, manejou, como arquiteto único, excludente, o aparato de poder que sustentou até agora o governo. A figura que organizou, num exercício de contradição sistemático, o arco opositor. É compreensível que sua morte crie incógnitas. A cena nacional se encaminha para uma nova configuração. É preciso pensar tudo de novo.

No centro desse mar de enigmas está Cristina Kirchner, que deve assumir sua dolorosa viuvez enquanto exerce a Presidência. É uma mutação insondável. Ela encontrou na figura do marido um princípio estruturante de seu psiquismo, de sua personalidade. A superposição dos laços afetivos e familiares aos papéis políticos transforma o luto da presidente numa questão de Estado.

As peculiaridades dessa relação se projetaram sobre a política. Kirchner foi a usina de poder da qual se alimentou a experiência administrativa iniciada em 2003 e continuada por sua mulher. Cristina sentiu-se muito à vontade ao gerenciar uma administração cujo ordenamento básico vinha pronto da residência oficial de Olivos.

Ela foi até agora uma espécie de primeira-ministra, capaz de dotar de discurso, imagem e até de algum controle de qualidade uma construção política e econômica de seu marido. A pergunta é de onde ela extrairá agora esse insumo essencial que recebia de mão beijada.

Para resolver a questão só existem conjeturas. É quase certo que a morte de Kirchner poderá gerar um acordo mínimo entre governo e oposição para apoiar uma administração débil. A hipótese supõe o que ainda está por se saber: se Cristina aceitará a debilidade.

É um cenário desconhecido para um grupo que se habituou, desde o início, em Santa Cruz, a entender a vida pública como um combate. Para essa experiência inédita teriam responsabilidade crucial Carlos Zannini e Julio De Vido, as únicas pessoas em que a presidente, Kirchner ausente, confia.

Há um fator poderoso que poderá influir na trama: o sentimento de orfandade que envolve agora um conjunto de políticos que, em seu verticalismo extremo, confiou sua sorte a um pai todo-poderoso. Kirchner cuidou muito bem para que entre seus seguidores próximos não houvesse um líder. A comparação é inexorável: Perón e Isabelita, Kirchner e Cristina. Quem será o Ricardo Balbín deste drama?

No caso de a presidente tentar sair da encruzilhada por esse caminho, deverá decidir de que modo liquidará as guerras que seu marido deixou pendentes. É questão de primeira grandeza: o conflito é constitutivo da identidade K e, portanto, a tentativa de abandoná-lo pode ser vivenciada como um modo de autodestruição.

Estender um eixo político-parlamentar à oposição pode solucionar a incógnita sobre o destino do governo. Mas não resolve a do destino do kirchnerismo. A morte de Kirchner é também a do chefe do Partido Justicialista (peronista). As rivalidades entre os peronistas encerram muitas chaves para o futuro imediato. Entre elas a da estabilidade do governo e da questão sucessória.

Há outro caminho possível, talvez menos sensato, mas ao qual o governo pode se sentir tentado porque tem a ver com sua cultura política. Como um batalhão que perdeu seu comandante, Cristina Kirchner e seu entorno podem apostar na substituição do reordenamento político por um poder de fato, sempre carregado de prepotência, que lhe garantia o chefe morto.

Se for esse o caso, o olhar deve se voltar para Hugo Moyano. Se se interpreta que Kirchner não era um sócio mas um dique para a soberba expansiva desse sindicalista, pode-se especular que a inércia que predominou nos últimos meses se torne ainda mais pronunciada. Quer dizer, um governo que carece do know-how do diálogo e do acordo pode acabar capturado por alguém que lhe ofereça a ilusão de que há muito pouco o que mudar, o que seria arriscadíssimo. Porque, desde a madrugada de ontem, quase tudo mudou.

CARLOS PAGNI é jornalista.

© La Nación/GDA