Título: Sangria na Previdência pode chegar a R$ 1,7 bilhão ao ano
Autor: Fabrini, Fábio
Fonte: O Globo, 07/11/2010, O País, p. 4

CGU já constatou 95,2 mil benefícios irregulares e investiga outros 119,9 mil

BRASÍLIA. Cofre sensível e deficitário, que ameaça ser um vespeiro para a presidente eleita, Dilma Rousseff, a Previdência Social sofre uma sangria diária provocada por inúmeros erros e fraudes de pequena monta.

Desde 2002, a Controladoria Geral da União (CGU) constatou pagamentos indevidos a 95,2 mil beneficiários, cujo prejuízo anual alcançava R$ 1,063 bilhão.

Esses pagamentos foram cancelados, mas ainda há 119,9 mil aposentadorias, pensões e auxílios, que consomem R$ 1,7 bilhão ao ano, sob suspeita e que viraram alvo de investigação.

Os dados expõem a vulnerabilidade do sistema, que já vive um problema estrutural crônico, causado pela arrecadação insuficiente, e deve fechar 2010 com R$ 45,7 bilhões no negativo.

O Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) admite que os valores apurados internamente superam os detectados pela CGU, embora não os revele.

E trata os pequenos golpes como um desafio superior aos desvios milionários que macularam a imagem da Previdência, como o caso Jorgina de Freitas.

As irregularidades foram constatadas pela Secretaria Federal de Controle Interno da CGU, a partir do cruzamento de bancos de dados oficiais. A maioria refere-se ao desembolso de dois ou mais benefícios a uma só pessoa. Ao todo, 67,6 mil beneficiários foram pegos nessa situação, o que anualmente gerava um desembolso desnecessário de R$ 861,1 milhões.

Havia casos de gente que recebia duas aposentadorias, duas pensões, dois auxíliosdoença, dois auxílios-acidente ou era oficialmente inválido, mas trabalhava.

Processo para comprovar irregularidade leva 70 dias Esses pagamentos foram cortados, mas há outros 103,9 mil casos semelhantes sob avaliação, cujo prejuízo potencial é de R$ 1,6 bilhão anuais. Quando um beneficiário fica na peneira da CGU, só perde o direito de receber depois de um processo para confirmar a irregularidade ¿ ele leva no mínimo 70 dias. Em caso de fraude, iniciam-se os procedimentos para reaver a verba, nem sempre favoráveis ao erário.

Dos R$ 553,1 milhões em processo de reclamação atualmente, R$ 15,5 milhões foram quitados.

Mais R$ 313,5 milhões estão sendo descontados aos poucos dos devedores, como empréstimo consignado, pois eles mantiveram algum vínculo com o INSS. Outros R$ 74,6 milhões, após confirmado o calote à cobrança administrativa, entraram para a dívida ativa.

¿ A inadimplência é alta e nem sempre o devedor tem patrimônio para ser penhorado na Justiça ¿ constata o diretor de Benefícios do INSS, Benedito Brunca.

A maior pedreira têm sido as chamadas ¿aposentadorias do além¿. Conforme a CGU, entre 2002 e 2010 a Previdência continuou pagando benefícios a 27 mil pessoas que já haviam morrido ¿ uma conta anual de R$ 196,9 milhões ¿, para alegria dos que se apoderaram dos cartões de benefício após o óbito.

Brunca explica que, se nessas situações é raro alguém próximo do falecido aparecer para explicar o que houve, quanto mais para devolver os valores. Hoje, há 8,5 mil casos similares sob apuração, cujo prejuízo somaria R$ 71,6 milhões anuais.

Nem o funcionalismo federal está imune ao problema. Auditoria da CGU sobre o Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs) apurou que, mesmo mortos, ao menos oito aposentados continuavam na folha de inativos em 2009. O órgão garante que a falha foi corrigida.

O INSS também tem pago benefícios incompatíveis a servidores públicos, como ocorreu em 488 casos desde 2002. Há suspeita em mais 7,4 mil sob apuração, cujos desembolsos somam R$ 71,6 milhões por ano.

Para a CGU, o controle da Previdência Social sobre seus processos tem aumentado, principalmente após o início das auditorias sobre o órgão. Porém, numa estrutura de dimensões gigantescas e com vícios históricos, ¿há margem para o aprimoramento¿.

A maioria das irregularidades ocorre por incapacidade do sistema do INSS de dialogar com outros bancos de dados oficiais. Por isso, a integração é vista como uma das medidas para evitar fraudes a conta-gotas.

Dois bancos de dados do INSS serão unificados O pagamento de aposentadorias a mortos é identificado, normalmente, após o cruzamento de informações sobre óbitos de cartórios e do Ministério da Saúde.

Brunca diz que, fora medidas como o censo previdenciário, para confirmar dados cadastrais, os processos de atualização tecnológica têm sido permanentes.

No ano que vem, segundo ele, começa a ser implantado o Sistema Integrado de Benefícios (Sibe), que unirá dois enormes bancos de dados do INSS, aumentando, com isso, o controle sobre a entrada de informações.

¿ Estamos evoluindo. O desafio é reduzir a vulnerabilidade.

As pequenas fraudes ocorrem numa escala superior. Temos um universo de beneficiários (27 milhões) maior que a população de vários países ¿ pondera.

Segundo ele, nos casos em que fica evidente a má-fé do cidadão, encaminha-se o caso ao Ministério Público para oferecer denúncia à Justiça. Mas, questionado, o INSS não apresenta números a respeito.

¿ Muitas pessoas entendem que o que fazem não é burlar, pois sua situação econômica justificaria ¿ comenta Brunca.

Especialista em Previdência, o economista Marcelo Caetano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que eliminar os pequenos golpes é impossível num sistema previdenciário tão grande e com a tecnologia disponível hoje. Embora o cruzamento de informações seja positivo, alguns benefícios escapam a esse tipo de controle.

¿ Os aposentados do campo não precisam comprovar tempo de contribuição, mas que foram, de fato, trabalhadores rurais. Isso diminui a possibilidade de controle da Previdência. Cabe a eles levantar declarações e provas necessárias para receber a aposentadoria ¿ exemplifica.