Título: Rogai por nós, estudantes
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 12/07/2009, Brasil, p. 10

Pesquisa sobre aulas de religião no Brasil mostra que boa parte dos estados ignora a Lei de Diretrizes e Bases, que determina a disciplina como facultativa e limitada até a 8ª série. Em alguns locais, a matéria é oferecida no ensino médio e infantil

Ponto polêmico de um acordo(1) assinado entre o Brasil e o Vaticano, atualmente sob análise do Congresso Nacional, o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras é uma espécie de caixa-preta. É a única disciplina que não se submete a orientações do Ministério da Educação (MEC). O conteúdo da matéria bem como os critérios de contratação dos professores ficam a cargo dos governos estaduais, que muitas vezes ignoram regras estabelecidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Uma delas, que descreve a disciplina como facultativa e, portanto, fora da carga obrigatória anual do ensino fundamental, de 800 horas, é atropelada por oito estados. Do mesmo modo que em oito unidades da Federação, a matéria foi estendida ao ensino médio, enquanto a LDB e a própria Constituição Federal só mencionam a oferta das aulas até a 8ª série.

Os dados e conclusões são parte de um estudo inédito, obtido com exclusividade pelo Correio, denominado Ensino religioso: qual o pluralismo?. Financiado pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Comissão de Cidadania e Reprodução, uma entidade sem fins lucrativos, o levantamento conseguiu traçar, por meio de consulta a legislações e entrevistas com as secretarias de educação, um retrato do ensino de religião no país. ¿Na medida do possível, esse é o mapa nacional. Convém observar que, apenas analisando as normais legais de cada estado e considerando as informações que nos foram passadas oficialmente, encontramos incongruências graves na condução dessa disciplina nas escolas. Porém, sobre o que se passa verdadeiramente dentro das salas de aula, ninguém tem controle¿, afirma a antropóloga Debora Diniz, coordenadora do estudo.

Pregação Um ponto-chave de toda a controvérsia que envolve o ensino religioso ¿ de oferta obrigatória nas escolas públicas de ensino fundamental, mas matrícula facultativa por parte do aluno ¿ é o risco de proselitismo(2), vedado pela Constituição Federal. Embora o perigo exista dentro de qualquer sala de aula, em estados como o Rio de Janeiro e a Bahia, o problema é ainda mais delicado. Isso porque, nas duas unidades da Federação, a modalidade de ensino estabelecida, inclusive nos textos legais, é a confessional. ¿Não existe um impeditivo de adotar esse modelo, mas como temos de assegurar a diversidade religiosa, estabelecida em lei, como garantir aulas de todas as denominações? Se houver grupos de alunos de 10 confissões diferentes, haverá professores de todas elas?¿, questiona a doutora em filosofia Roseli Fischmann, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo Fischmann, a impossibilidade de garantir um ensino condizente com as denominações de fé de todos os alunos fere um princípio constitucional, segundo o qual ninguém será privado de direitos em virtude de religião. Uma saída das secretarias estaduais de educação para evitar a polêmica tem sido adotar o ensino religioso do ponto de vista histórico, filosófico, antropológico. ¿Por mais antiamericano que o indivíduo seja, ele não estuda quem foi Abraham Lincoln ou Martin Luther King na escola? Por que não conhecer também, sem entrar em religião A ou B, quem foi Jesus?¿, sugere Ibi Batista, vice-presidente do Conselho de Pastores Evangélicos do Distrito Federal.

Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Roberto Leão, por mais que as legislações, tanto federais quanto estaduais, e os próprios profissionais tentem garantir a pluralidade religiosa, tal pretensão é utopia. ¿Ainda que adequações sejam feitas, sempre haverá distorções, porque ninguém é totalmente neutro. Somos contra a oferta de ensino religioso nas escolas públicas, mesmo que de forma facultativa, porque entendemos que isso fere a laicidade do Estado¿, ressalta Leão.

Debora tem a mesma opinião. ¿Há um falso pressuposto de que as religiões falam da mesma coisa, o que é incorreto. A oferta de disciplina religiosa em instituições públicas ameaça a justiça religiosa¿, destaca. A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que representa no país a Igreja Católica, instituição religiosa que a maioria dos brasileiros declara seguir, foi procurada pela reportagem, mas não se manifestou.

1- Acordo Em novembro do ano passado, o Brasil assinou um acordo com o Vaticano, que é considerado, do ponto de vista jurídico, um Estado. O documento versa sobre itens que vão desde a imunidade fiscal ao ensino religioso nas escolas públicas. A matéria, controversa ainda, precisa passar pelo crivo do Congresso Nacional, para depois ser ratificada pelo presidente da República.

2- Proselitismo Pode ser entendido como empenho, ativismo, intenção de convencer o outro de uma ideia ou opinião, levá-lo a adotar um sistema ou convertê-lo a uma crença.

Eu acho... Fotos: Gustavo Moreno/CB/D.A Press

Elivelton de Oliveira, 21 anos, morador de Santa Maria

¿Se a escola quer oferecer ensino religioso, tem que oferecer para todas as crenças, todas as religiões, para não ficar um negócio tendencioso. Mas eu duvido que as escolas tenham estrutura para dar essas aulas religiosas diversificadas. Tem que ver também se os alunos vão se interessar.¿

Neidiane Dias, 27 anos, moradora de Santa Maria

¿As aulas religiosas podem ajudar nessa rebeldia dos jovens, na questão das drogas, da violência. Na minha época, eu fiz ensino religioso. Mesmo eu sendo católica e minha professora evangélica, eu gostava da aula. Ela falava de Deus, e isso é o que importa.¿

STF decide polêmica

O estudo Ensino religioso: qual o pluralismo? será entregue ao ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), na forma de um memorial. O objetivo será dar subsídios ao magistrado numa ação direta de inconstitucionalidade da qual ele é relator sobre ensino religioso nas escolas. Ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) contra o Rio de Janeiro, a ação questiona a Lei Estadual nº 3.459/2000, que instituiu as aulas na forma confessional ¿ ministrada de acordo com o credo professado pelo aluno por professores que, além de concurso público, passarem pela chancela de autoridades religiosas.

Entre outros pontos, a CNTE argumenta, na ação, que a lei fluminense fere o parágrafo 1º do artigo 19 da Constituição Federal. Tal dispositivo proíbe que o governo federal e os estaduais mantenham relações de dependência ou aliança com cultos religiosos. O processo menciona, ainda, um eventual desrespeito ao artigo 5º, no que se refere à privação de direitos por motivos de crença religiosa. Procurada, a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro não atendeu a reportagem. (RM)