Título: Um caixa para o Mercosul
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 12/07/2009, Mundo, p. 22

Proposta brasileira prevalece na estrutura definida para o banco que financiará o desenvolvimento da América Latina

Estão definidos os detalhes técnicos para colocar em marcha o Banco do Sul. O projeto nasceu de uma ideia do presidente venezuelano, Hugo Chávez, de unir parte das reservas dos países da região e montar uma espécie de ¿FMI do Sul¿. Mas venceu o jeitinho brasileiro, e a nova instituição terá um perfil parecido com o do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES): vai concentrar recursos dos países com capacidade de aporte para financiar projetos de integração e desenvolvimento.

O trabalho técnico para estabelecer as bases do Banco do Sul está concluído e agora será objeto de decisão política: como tratado internacional, ele tem de ser assinado pelo executivo de cada um dos sete países inicialmente associados e só entra em vigor depois de ratificado pelos legislativos. ¿Tenho expectativa de que, em algum ponto do segundo semestre deste ano, seja feito um ato para a assinatura¿, arrisca o chefe de gabinete do Ministério da Fazenda e principal negociador do governo Lula para o tema, Luiz Eduardo Melin.

Ele adianta que será fixada uma data limite para que o executivo de cada país-membro assine o texto, uma vez que não há como colocar prazos para os legislativos. ¿A capacidade operativa do banco para o início de 2010 é um cenário muito realista¿, acrecenta, otimista, o ex-ministro da Economia do Equador Pedro Páez. Melin também considera que os cinco países da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) que se mantêm de fora do projeto do banco ¿ Colômbia, Chile, Peru, Guiana e Suriname ¿ mudarão de ideia depois de verem o desenho que finalmente foi constituído e as ¿regras transparentes¿.

Ambições O negociador brasileiro revelou ao Correio que a proposta inicial sobre a mesa não era para um banco de desenvolvimento clássico. ¿Havia muitas ideias inovadoras que diziam que o banco atuaria em todos os setores, teria contas correntes, seria o embrião de um banco central de toda a região, então receberia as reservas internacionais de todos os países, ou uma parcela expressiva delas, e ainda serviria como um fundo de compensação macroeconômica, que é o papel do FMI¿, conta Melin.

As propostas anteriores visavam reformular a arquitetura financeira regional. O ex-ministro equatoriano Pedro Páez, um dos organizadores dos seminários realizados para desenhar a nova instituição, explicou por telefone que essa reforma incluiria pelo menos três pilares: ¿O Banco do Sul, coração da nova banca de desenvolvimento; o Fundo do Sul, um fundo comum de reservas de uma rede interconectada dos Bancos Centrais da América Latina, alternativa ao FMI; e o desenvolvimento de uma moeda eletrônica comum, sobre a base de um sistema de compensação de pagamentos¿.

Os objetivos do Banco do Sul, como foram colocados inicialmente, representavam uma tarefa complicada. Melin reconhece que levou tempo trazer os demais colegas ao pragmatismo brasileiro, mas eles estavam ¿abertos¿ para escutar a visão do Brasil. ¿A nossa visão, desde o primeiro momento, era a de que faria sentido um instrumento regional para atuar no segmento `banco de desenvolvimento¿, espelhado em experiências brasileiras de 50 anos, bem-sucedidas, com o BNDES, em relação à governança e à análise de crédito¿, explica Melin.

O equatoriano Páez acredita que o Banco do Sul poderá atuar de maneira modular, apenas como banco de desenvolvimento, independentemente dos outros dois pilares, mas insiste que isso será ¿insuficiente¿ para construir um espaço de soberania supranacional na região. ¿É indispensável para os países do sul construírem uma institucionalidade que nos defenda dessa lógica angustiante de depender do dólar.¿ destaca o ex-ministro.

O número As reservas US$ 36 bilhões é o montante disponível para a América Latina no Banco Mundial

US$ 46 bilhões podem ser oferecidos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)

Dinheiro na mesa

A última reunião de ministros da Fazenda sobre a nova instituição bancária, em Caracas, no fim de março, definiu que Brasil, Argentina e Venezuela vão colaborar com US$ 2 bilhões cada um para o capital inicial do banco. Os países intermediários, como Equador e Uruguai, devem colocar US$ 400 milhões. Bolívia e Paraguai, as duas menores economias do grupo, entram cada um com US$ 100 milhões. Quando o projeto foi criado, a ideia era que o capital inicial somasse US$ 7 bilhões.

Apesar da crise financeira global, decidiu-se aumentar o montante para US$ 10 bilhões. ¿Na realidade, seria muito mais. No momento em que estiverem os 12 países da América do Sul, poderíamos contar com US$ 20 bilhões. No desenho do banco, estamos falando de valores significativos, que terão um impacto real sobre os mercados financeiros¿, acredita Páez.

Alguns países, como Equador e Venezuela, pretendem tirar dinheiro das reservas internacionais para colocar no novo banco. ¿O Brasil deixou claro na mesa de negociação que não fará isso e que não aceita caracterização do Banco do Sul como um banco para gerir reservas. Ele é um banco de desenvolvimento¿, enfatiza Melin. O aporte inicial brasileiro será feito por recursos orçamentários, do Tesouro Nacional. ¿Depois, o banco tem de ser autossustentável, tem de gerar seus resultados financeiros, e é com base no seu patrimônio e nos resultados que alavancará os projetos¿, explicou.

O fato de alguns países integrantes caminharem para um regime proclamado ¿socialista¿ não preocupa o negociador brasileiro, que confia nas regras e nos órgãos de controle criados. ¿Um ponto que o Brasil reforçou e fará parte do estatuto do banco é que esse não é um projeto de governos, mas de Estados, para uma instituição regional permanente. Serve para o presidente Lula e para o presidente Chávez e tem que forçosamente servir, debaixo das mesmas regras, para seus sucessores.¿

A contragosto Uma das polêmicas sobre a participação brasileira no Banco do Sul girou em torno do BNDES. O economista Éric Toussaint, participante dos seminários, afirmou ao semanário francês Politis que ¿o Brasil não sente a necessidade de um novo banco multilateral para a América Latina¿: o BNDES é o maior banco regional e já financia projetos em toda a região, desde que os países receptores ¿comprem brasileiro¿ ¿ ou seja, o crédito tem como contrapartida a exportação de mercadorias ou a realização de grandes obras públicas por empresas brasileiras.

¿O governo Lula aderiu a contragosto ao Banco do Sul¿, disse o francês. Um assessor do BNDES explicou à reportagem que ¿muitas vezes um projeto não anda porque falta investimentos da outra parte¿. Com o Banco do Sul, raciocina Toussaint, ¿pode haver um financiamento complementar, inclusive para as operações com o BNDES¿.

Outro ponto que beneficiará o Brasil se refere à criação de garantias, avais e seguro de crédito. Hoje, o país gasta duas vezes: financia os projetos e banca o seguro para o país vizinho que está sem crédito. ¿Somos nós assegurando a nós mesmos¿, explica Melin. O Banco do Sul obrigará todo mundo a colocar a mão no bolso para as iniciativas de integração. ¿Em vez de deslocar o BNDES, ao contrário: o Banco do Sul desafoga e chama os países parceiros a contribuir um pouco mais¿, resume Melin. (VV)

Dolarizado O Equador, cuja economia foi dolarizada em 2000, é um dos países mais vulneráveis às crises financeiras globais. O país luta hoje para mudar o sistema criado em 1944 pelos acordos de Bretton Woods, que transformaram a moeda americana no ativo internacional usado para as trocas comerciais e financeiras entre países. A dolarização da economia equatoriana, adotada como parte de um ajuste econômico de tipo neoliberal, teve impacto no custo de vida e alimentou levantes populares que abreviaram a duração de quatro governos.