Título: Cristina Kirchner, entre pombas e falcões
Autor: Solá, Joaquín Morales
Fonte: O Globo, 01/11/2010, Opinião, p. 6

Como governará Cristina Kirchner no ano que resta de seu mandato? Quais serão seus assessores agora que o grande conselheiro já não está? Quem serão os encarregados de pôr ordem no peronismo, de tratar com os governadores, de disciplinar os prefeitos? Quem terá autoridade para impor limites à ambição do sindicalista Hugo Moyano? O kirchnerismo tem claramente duas vertentes. Uma se inscreve na política clássica. A outra se inspira na épica dos anos 70. Uma é mais realista, outra mais idealista. Uma prefere a negociação política, a outra opta pela violência tácita dos fatos consumados. Kirchner oscilava entre uma e outra. Não porque tivesse dúvidas, mas porque sabia qual era a melhor, em dado momento, de acordo com suas necessidades.

Os Kirchner foram um casal de poder, mas isto não os tornava idênticos.

Néstor Kirchner conhecia a condição indispensável da engenharia política.

Sabia que governadores e prefeitos eram a base essencial de qualquer projeto eleitoral. Não perguntava se alguém era de esquerda ou de direita; só pedia que estivesse do seu lado.

Cristina Kirchner põe conceitos onde seu marido punha prática. Esses conceitos criam mundos de amigos e de inimigos, em que só cabem o bem e o mal. Néstor também tinha uma lógica binária, mas seus inimigos não eram conceituais, mas de fato. Nem em sua época de legisladora a presidente tolerava o diálogo, a negociação e a concessão.

Preferia perder a conceder.

O kirchnerismo nutria o pragmatismo de seu líder com algumas figuras.

Entre esses velhos artesãos da política (a quem às vezes o ex-presidente obrigava a esquecer a própria história) estão o chefe de gabinete Aníbal Fernández (que é muito melhor quando cala que quando fala); o ministro do Interior, Florencio Randazzo (que não esqueceu, embora pareça, que a política é um jogo de equilíbrios instáveis); o presidente provisório do Senado, José Pampuro (um dos poucos kirchneristas respeitados pela oposição); o presidente da bancada oficialista de senadores, Miguel Pichetto (que nunca deixou de negociar, embora Kirchner destruísse ao final todos os acordos); e o chefe da bancada oficialista de deputados, Agustín Rossi (que foi um conciliador, antes de adotar um fundamentalismo tardio).

Na outra vertente, a do fanatismo e do famoso lema de ¿aprofundamento do modelo¿, estão o secretário legal e técnico da Presidência, Carlos Zanini; o secretário-geral da Presidência, Oscar Parrilli; e o deputado Carlos Kunkel, que Kirchner considerava um conselheiro indispensável.

O ministro Julio De Vito fazia uma conexão entre os dois grupos, servindo tanto para conciliar como para romper. Nunca foi um dos preferidos da presidente e só ficou no cargo por pressão de Néstor.

A vitória das pombas ou dos falcões marcará a tensão ou a distensão nos próximos meses. Os moderados se imporão se a presidente descobrir que já não existe o nexo natural que havia entre o governo e a estrutura do partido governante. Cristina nunca dedicou um segundo de sua vida a tramas políticas, dentro ou fora do peronismo.

A vitória dos duros ocorrerá se a chefe de Estado se convencer, como parece ser o caso nos últimos meses, de que não lidera uma reforma, mas uma revolução. Ela foi a primeira a ter certeza de que a mensagem das últimas eleições foi a necessidade de ¿aprofundar o modelo¿ que saiu derrotado.

A cenografia do velório deu as primeiras mostras de que Cristina Kirchner se voltaria para os fundamentalistas.

A presidente não deixou espaço para que a saudassem dirigentes opositores como Mauricio Macri, Ricardo Alfonsín e Francisco de Narváez. Nem sequer membros da Corte Suprema de Justiça puderam cumprimentar a chefe de Estado. Hugo Moyano (que atropelou o ritual oficial e se chocou com a recepção gélida que somente Cristina Kirchner pode dar a alguém) e Maradona foram os únicos que romperam o férreo cordão protocolar em torno da presidente.

Aníbal Fernández dirigiu-se com lealdade ao vice-presidente Julio Cobos e ao ex-presidente Eduardo Duhalde para dizer-lhes que era melhor não irem ao velório. Tinham sido alvo da ira dos manifestantes, que haviam passado grande parte da noite mais apupando Cobos que elogiando os Kirchner. De Cobos e Duhalde a presidente não sentiu falta.

Quanta sensibilidade perdeu a sociedade argentina nestes anos para que até a morte se torne impotente diante da maré de ódio e rancor? Que ventos foram semeados para colher essas tempestades? A morte de Perón não provocou tanta crispação em 1974, embora seja certo que o velho líder tenha voltado ao país consensual e moderado, como não havia sido durante seus primeiros mandatos. A morte de Raúl Alfonsín, há um ano e meio, só promoveu a nostalgia social de tempos mais amáveis. Agora, é uma lástima que o último adeus ao ex-presidente Kirchner tenha ficado a cargo de agressivos representantes do kirchnerismo que cresceu à sua sombra.