Título: Nunca antes...
Autor: Benevides, Carolina; Menezes, Maiá
Fonte: O Globo, 01/11/2010, O País, p. 25

Dilma se torna um emblema: a primeira mulher presidente; isto depois de uma campanha que pisou em bandeiras feministas

Dilma Rousseff incorpora, com sua eleição, o bordão predileto de seu padrinho Luiz Inácio Lula da Silva ¿ que também quebrou um paradigma ao se tornar o primeiro ex-torneiro mecânico que chegou à Presidência: nunca antes na História uma mulher assumiu o comando do Brasil. Uma conquista, que carrega também uma ressalva.

Dilma chega ao posto mais alto da nação depois de uma campanha em que bandeiras feministas foram pisoteadas.

A eleição da ex-ministra e exmilitante é fruto da luta das mulheres? Especialistas divergem.

Mas, para o imaginário nacional ¿ eles concordam ¿, é significativa a escolha de uma mulher para suceder a um operário.

¿ Sem dúvida, o fato de uma mulher se candidatar e ser eleita presidente é consequência de um processo de aperfeiçoamento da democracia no Brasil. Afinal, o direito ao voto para a mulher só foi conquistado mesmo nos anos 1930 ¿ sintetiza a historiadora Isabel Lustosa.

¿ Mesmo sendo a candidata do presidente Lula, Dilma é produto da consolidação da democracia brasileira. E esta eleição mostrou que, se a sociedade não tivesse mudado, Lula não conseguiria ajudar a elegê-la ¿ concorda Rafael Duarte Villa, professor de ciência política e de relações internacionais da USP.

Há, no entanto, polêmica sobre o processo de amadurecimento do país: para a antropóloga Miriam Goldenberg, discutir questões de gênero já é indício de que a vitória de Dilma está longe de significar o recuo da desigualdade de gênero: ¿ Se houvesse igualdade não haveria a discussão sobre o fato de ser mulher.

Ela usa um argumento semelhante ao de Lula, ao afirmar que o fato de ser mulher trará um ônus a Dilma: ¿ A realidade é que Dilma, como todas as mulheres, terá que provar no mundo dos homens que pode governar. Simbolicamente conquistamos um espaço importantíssimo, mas vamos pagar um preço alto por qualquer deslize. Sendo mulher, ela não pode relaxar um segundo.

Tem que provar competência, seriedade e seu valor o tempo todo. É desigual.

A imagem de uma mulher na galeria de presidentes do país terá efeitos simbólicos bem-vindos, na avaliação de quem luta na trincheira do direito feminino.

Dilma coroa uma lista de conquistas, que se inicia com o básico em 1932, quando as mulheres ganharam o direito de votar.

Na época, só as casadas.

¿ É a realização de um sonho.

É muito simbólico. Imagina isso nos livros escolares? Isso entra no imaginário. Com seu perfil, Dilma traz a ideia da autonomia, de gerir sua vida e ser sujeita de sua história ¿ diz a socióloga Ana Alice Alcântara, da Universidade Federal da Bahia, não sem revelar uma frustração: a candidata Dilma, na avaliação dela, decepcionou: ¿ A campanha no 2oturno foi conservadora em relação ao direito das mulheres. Reforçou estereótipos. Dilma entregou as demandas do feminismo.

O que apresentaram de proposta para 40% das mulheres que comandam famílias? Coordenadora de Direitos Econômicos do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), Ana Carolina Querino diz ser ¿extraordinário uma mulher na Presidência mesmo que não levante as bandeiras femininas¿: ¿ A sociedade estabeleceu um papel para os homens, que transitam na esfera pública, e para as mulheres, que ficam com a esfera privada. Eleger uma mulher é fantástico, porque ainda ganhamos menos, e muitas acham que trabalhar é só para completar a renda.

O papel determinante de Lula na escolha e na condução da campanha relativizaram a questão de gênero na disputa. Ou seja: Dilma é muito mais fruto de Lula do que de batalhas pelo direito das mulheres.

¿ Dilma foi escolhida pelo Lula.

Ela precisava de uma pessoa sem expressão político-partidária.

Ela é eleita em nome do cacife de Lula. Mas acaba carregando um simbolismo, da mesmo forma que Lula, por ser operário ¿ diz o cientista político Carlos Alberto Furtado de Melo.

¿ A eleição de uma mulher é um fato histórico e Lula ter ajudado não diminui o impacto.

Uma mulher ocupando um espaço historicamente reservado aos homens contribui para a ascensão das mulheres nos cargos públicos. O Brasil é um dos países da América do Sul que menos tem mulheres ocupando esse espaço. Há pouca representação no Legislativo e no Executivo ¿ diz Villa.

¿ Em 94, foram eleitas 32 deputadas federais. Em 98, três anos depois da primeira iniciativa de cotas para mulheres, o número não passou de 29. Em 2002, foram 42. Em 2006, tivemos 45, e nesta eleição também.

O número está estagnado ¿ diz Fernanda Feitosa, cientista política e consultora do Cfemea.

Eleição de uma mulher causa impacto na América Latina Para a América Latina, a escolha de Dilma também será simbólica, depois de Michelle Bachelet, no Chile, e Cristina Kirchner, na Argentina: ¿ Terá um impacto muito maior, já que o Brasil é o principal país latino-americano, o que tem maior poder econômico e político ¿ diz Rafael Villa, que compara Dilma à Bachelet: ¿ Dilma e Bachelet vêm de movimentos de esquerda, sofreram perseguições da ditadura.

As comparações com outro emblema recente ¿ o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama ¿ é natural. Independente do sexo, o desafio de Dilma a partir de agora é criar sua identidade pós-Lula.

¿ Ao assumir, Dilma será o que construir. Não acredito que fique atrelada ao Lula, e ao fato de ser mulher. Ninguém mais fala que o Obama é negro ¿ diz Mirian Goldenberg.