Título: Diferenças emergentes
Autor: Pereira Merval
Fonte: O Globo, 18/11/2010, O País, p. 4

Discutir a globalização e as diferenças emergentes no mundo multipolar que vem se impondo à antiga ordem estabelecida, especialmente após a crise financeira internacional de setembro de 2008 que ainda espalha suas consequências, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, é o objetivo central do XXII Conferência da Academia da Latinidade, que começou ontem no Rio.

Embora entre os participantes estejam também especialistas em América Latina, e as especificidades das experiências políticas no continente venham a ser objeto de debate, sobretudo as chamadas "novas democracias", o que se destacou mesmo no primeiro dia foi a definição do cientista político Candido Mendes, secretário-geral da Academia da Latinidade, de que o Brasil está cada vez mais marcado como parte dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China); dessa maneira, amplia sua importância geopolítica na percepção internacional.

Um dos especialistas em América Latina presentes ao seminário é o professor Javier Sanjinés, da Universidade de Michigan.

Ele desenvolve em seu trabalho a ideia de "descolonização", em que defende a tese de que o tempo histórico do Ocidente "se rompe ao se chocar com a vida de nossos povos".

Considera que, depois de dois longos períodos de projetos de desenvolvimento que eram baseados nos parâmetros predominantes no Ocidente, hoje as regras do jogo estão mudando, "abrindo caminho para que a não contemporaneidade das várias nações rompam com a noção de Estado nação tradicional".

Como representantes dos Brics, participaram da conferência dois scholars chineses. Tong Shijun, vice-presidente da Academia Social de Ciências de Shangai, e Wang Ning, professor das Universidades de Shangai e de Tsinghua, desenvolveram temas complementares envolvendo as múltiplas modernidades e as múltiplas democracias chinesas.

O professor Wang Ning definiu a modernidade na China em três períodos: como um projeto iluminista de 1919 até 1949; como um discurso totalitário de Mao em busca da modernização do país de 1949 a 1976; e, hoje em dia, com a tentativa de ser global, mas agir local (glocal), em busca de uma modernidade com características chinesas.

Ele defende a tese de que a modernidade na China atual desconstruiu a ideia de que seja possível haver apenas uma definição de modernidade.

Na definição de Candido Mendes, o mundo hoje está em um segundo estágio da globalização. Representa uma ruptura com a fase da globalização hegemônica dos Estados Unidos ou, como compara, o surgimento dos Brics em contraposição ao "velho Salão Oval" da era Bush.

Segundo o secretário-geral da Academia, a globalização coloca em discussão hoje uma hegemonia ultrapassada pelo jogo de interações do mundo multipolar, onde os Brics atuam em outra sintonia que não as confrontações "conhecidas e cansadas" dos antigos impérios do Ocidente.

Candido Mendes vê o Brasil como capaz de ser o mediador entre o velho discurso do império e as vozes de estados imensos como a China e a Índia.

Essa certeza não se abala nem mesmo diante do fato recente de que o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, apoiou recentemente uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU tanto para a Índia quanto para o Japão, deixando de lado o Brasil, que sempre tentou uma palavra oficial do governo dos Estados Unidos a favor de nossa pretensão.

A relação do governo brasileiro com a administração Obama, que já foi de lua de mel (quando Obama disse que Lula era "o cara" e parecia encantado com o brasileiro), hoje é pelo menos fria, e a sensação é a de que a Casa Branca aguarda sinais de como serão as relações no futuro governo Dilma.

A especulação de que a embaixadora do Brasil na ONU poderia ser nomeada ministra das Relações Exteriores deve ter suscitado preocupações no governo americano.

Ela fez um discurso recentemente na ONU afirmando que o Brasil estava muito preocupado com o aumento da pobreza nos Estados Unidos, e sugerindo que Obama adotasse algumas medidas que o governo Lula vem promovendo no combate à miséria no Brasil.

Um discurso provocativo que se esperaria de um representante do governo Chávez, e não do Brasil, comentou um diplomata americano, refletindo a percepção do Departamento de Estado.

Mesmo com esses episódios mais recentes e a crise provocada pela tentativa brasileira de intermediar um acordo sobre o programa nuclear do Irã, que acabou deixando o Brasil isolado no Conselho de Segurança da ONU, Candido Mendes considera que o Brasil tem um protagonismo emergente no cenário internacional e sua Realpolitik do Século XXI acabará se impondo.

Candido Mendes considera que o país é um "parceiro natural" no Oriente Médio e um porta-voz da afirmação das nações africanas. Ele ressalta, no entanto, que os quatro países que formam os Brics têm em comum um forte mercado de consumo interno, mas também assimetrias, quando se verifica que o desenvolvimento sustentável tem que ter um equilíbrio nas suas facetas econômica, social, política e cultural.

O Brasil, dentro desse cenário, é o país mais equilibrado entre os Brics, pois tem uma democracia estável, não tem questões de fronteiras, nem de divisões internas da sociedade.