Título: Escombros, cólera, eleições: é o Haiti
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Fonte: O Globo, 18/11/2010, Opinião, p. 6

Uma epidemia de cólera que matou até ontem mais de 1.100 pessoas e infectou mais de 18 mil tornou a situação insustentável no Haiti. O desespero do povo se volta contra a Minustah - força da ONU cujo braço militar é comandado pelo Brasil -, pois muitos atribuem ao contingente nepalês a disseminação da doença no país, destruído em janeiro passado pelo maior terremoto em mais de 200 anos.

Manifestantes assumiram o controle da segunda cidade do país, Cap-Haitien, no Norte, o que dificulta o trabalho das organizações humanitárias que lutam para deter o cólera. Em meio a tudo isso, prossegue a campanha para as eleições do dia 28, para escolha do presidente (há 19 candidatos), dos 99 membros do Congresso e de 11 dos 30 senadores. Imagine-se o efeito, para a disseminação da doença, de multidões em comícios realizados em precárias condições sanitárias.

A Minustah terá de impor a ordem no Haiti em condições extremamente desfavoráveis - com risco de suas tropas virem a contrair cólera. Mas só essa força de 12 mil homens poderá garantir a realização do pleito do dia 28, pois, como se sabe, o exército do Haiti foi dissolvido pelo presidente Jean-Bertrand Aristide.

O país mais pobre das Américas tem uma longa história de instabilidade e corrupção. Em agosto e setembro de 2008, a natureza pareceu ter-se revoltado contra ele: os furacões Gustav, Hanna, Ike e a tormenta tropical Fay deixaram 800 mortos e prejuízos de US$900 milhões, ou quase 15% do PIB. Em janeiro deste ano, o terremoto. As estimativas variam entre 200 mil e 300 mil mortos, os prejuízos entre US$7,2 bilhões e US$13,2 bilhões, e o número de desabrigados alcança 1 milhão.

Esses números pavorosos mostram o tamanho do desafio da comunidade internacional, que reagiu rapidamente e prometeu ajuda de US$8,75 bilhões. Mas, na prática, a ajuda não está funcionando a contento. Uma das heranças do terremoto foram 27 milhões de toneladas de escombros na capital, das quais somente 5% foram removidos. A construção de novas moradias se arrasta, e cerca de 1 milhão de pessoas ainda vivem nos 1.300 campos de refugiados na capital, Porto Príncipe, e em seu entorno.

Um dos grandes problemas é que o governo do Haiti foi praticamente riscado do mapa - 20% dos funcionários públicos morreram e só ficou de pé uma em cada 28 repartições. Este se tornou o país das ONGs. A tendência começou em 2002, quando o governo George W. Bush decidiu, por divergências políticas, cortar a ajuda ao governo de Aristide e destiná-la às ONGs, que proliferaram.

"As ONGs fizeram um tremendo trabalho, especialmente em seguida ao terremoto. Mas agora é preciso algo em escala muito maior", disse à revista "Newsweek" o presidente de uma companhia privada à qual foi outorgado o primeiro grande contrato para remoção dos escombros de Porto Príncipe.

O pleito deverá ser o primeiro passo para a (re)construção das instituições políticas, ponto de partida para que os haitianos possam decidir o que desejam para o futuro: uma reconstrução que alivie mais rapidamente o sofrimento dos desabrigados, ou a construção a mais longo prazo, com maiores sacrifícios e resultados talvez mais duradouros.